COLOCAÇÃO DO PROBLEMA
Nossa sociedade vem mudando de forma acelerada, sobretudo em função da globalização e da revolução ocorrida na área da comunicação, o que vem transformando profundamente a inserção sócio-cultural das famílias e a formação da juventude. Vivi minha juventude no início dessas transformações, na década de cinquenta do século passado, tendo delas participado ativamente. Posteriormente, estudei sob diferentes ângulos o desenvolvimento dos jovens, nesse período, observando e analisando não apenas externamente e por algum tempo os seus problemas, mas também vivenciando, pesquisando e procurando intervir em busca de soluções. A grande vantagem de ter voltado minha atenção e engajado minha participação nessa área, observando de perto essa questão e as mudanças nela ocorridas, durante um percurso suficientemente longo, é que cheguei aos setenta anos com a possibilidade de vislumbrar uma linha geral no processo de desenvolvimento humano e social dos jovens, no contexto da relação entre as gerações, durante esse período.
Motivada pelo impacto do pujante despontar das transformações sociais e humanas em minha juventude, pela minha história familiar relacionada aos imigrantes italianos, no Brasil, e pela minha própria situação de imigrante, na França, passei a dedicar-me com grande empenho, desde os anos sessenta, ao estudo dos problemas dos jovens imigrantes, que já começavam, então, a se manifestar nessa época, em relação com as drogas, a violência e a dificuldade de inserção social. No final dos anos setenta do século XX, aprofundei a questão ao trabalhar para o Setor de Prevenção da Delinqüência do departamento francês de Assistência Social e Saúde (DASS) de Paris, como psicóloga de uma equipe de educadores de rua da periferia parisiense. Desde então, venho pesquisando as conseqüências da globalização, de suas transformações sociais e tecnológicas e das migrações dela decorrentes para o desenvolvimento psicológico de jovens, não só na França, mas também no Brasil.
A CRISE ENTRE AS GERAÇÕES E A SOCIEDADE DE COMUNICAÇÃO EM REDES
Ao retornar ao Brasil, em meados dos anos oitenta, verifiquei que a migração interna, influenciava também a inserção das famílias brasileiras que mudavam de estado ou região para os grandes centros urbanos em pleno desenvolvimento econômico. Trabalhando na Secretaria de Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro, num projeto ligado à organização de jovens favelados, conclui que em ambos os casos de migração podiam-se verificar um choque cultural entre as gerações, e que aqui também os problemas dos jovens apareciam ligados à questão das drogas, da violência e da dificuldade de acesso à vida social adulta e à cidadania.
Acompanhando a influência da globalização e das rápidas mudanças tecnológicas sobre as relações entre as gerações e o desenvolvimento dos jovens, a partir da década de noventa, tive a oportunidade de dialogar com pais e professores, no Rio e no estado de S. Paulo, estudando o papel da internet e a relação desta com o desenvolvimento da mente, o uso da internet pelos jovens, a tentativa dos pais de intervirem neste uso e o problema crescente da inversão de posições entre as gerações, de supervalorização da juventude e depreciação dos idosos, antes respeitados e tratados com elevada consideração pela sabedoria anteriormente atribuída aos mais velhos. Nos últimos anos, os problemas relacionados às drogas, à violência e à dificuldade de inserção social deixaram de ser restritos aos jovens de baixa renda e se disseminaram nas camadas sociais mais ricas. Indo adiante nestas reflexões e percebendo o crescente hiato entre as gerações, passei a levar em conta a atual consolidação da sociedade de comunicação em redes para o desenvolvimento dos jovens e para a transformação de suas relações sociais e familiares.
Parece-me atualmente fundamental procurar entender esse desenvolvimento levando em consideração as mais recentes transformações da tecnologia, das relações sociais e familiares e suas implicações para a formação dos jovens, de modo a tirar proveito das mudanças tecnológicas para o processo de desenvolvimento dos jovens e para uma evolução positiva de todas essas transformações. Em busca de soluções para a inserção social dos jovens, passei, portanto, a por em relevo a importância da criação e ampliação de espaços públicos, tanto no plano das entidades sociais como no plano virtual, de modo a responder ao desafio da formação de grupos e comunidades que, atuando nesses dois planos, pudessem contribuir para o desenvolvimento dos jovens, para sua entrada no mundo adulto e para seu acesso à cidadania. Algumas organizações, como, por exemplo, o Instituto de Desenvolvimento e Sustentabilidade[1], já vêm abrindo caminho nessa direção. Tendo observado, igualmente, que a orientação dos jovens para um novo tipo de humanidade e de relacionamento social vem sendo cultivada em outros grupos políticos de orientação marxista, em grupos espirituais relacionados à ioga ou em grupos religiosos[2], proponho a seguir algumas considerações e discussões a respeito dessas antigas e novas experiências, em minha apresentação no VIII Seminário de Psicologia e Senso Religioso.
Antes, contudo, procurarei aprofundar a questão abordando as linhas fundamentais do desenvolvimento psicológico dos jovens no acesso à vida social adulta, com base em minha trajetória pessoal e profissional, levando em conta, na presente abordagem, a reflexão que venho delineando, desde o final dos anos setenta, sobre os dilemas do conflito entre as gerações e suas implicações para o desenvolvimento dos jovens, assim como as conseqüências da migração para as rupturas familiares, culturais e religiosas, no contexto da globalização, da expansão do espaço virtual e da sociedade de comunicação em redes. É importante salientar a força crescente de uma dimensão transgressora e violenta em estreita relação com a desestruturação do espaço interno das famílias e do espaço público, que se acentuou após os anos sessenta do século passado, quando toma forma a chamada pós-modernidade. A inversão das posições entre as gerações e a acentuação dos conflitos entre pais e filhos dificultam ainda mais o processo de desenvolvimento dos jovens, exacerbando as resistências dos mais velhos a respeito das mudanças em curso.
Aumentam as inquietações dos pais e as dificuldades em lidar com a mudança constante das situações, gerando uma tendência a focalizar apenas os aspectos negativos e perigosos do uso das novas tecnologias, acusando-as de levar ao fechamento e alienação dos jovens. A vertente idealista e espiritual dos jovens é pouco conhecida, e não está sendo suficientemente valorizada, fora dos meios políticos e religiosos mais engajados. Embora existam distorções, na formação atual dos jovens, que serão a seguir analisadas e levadas em conta, não apenas a emergência do lado negativo e obscuro dos jovens não decorre somente das transformações mais recentes, das novas tecnologias e das novas formas de comunicação por elas impulsionadas, como também é preciso compreender que essas mudanças trouxeram muitas coisas boas e vêm propiciando a formação de um novo tipo de sociedade e de um novo modo de relacionamento ao qual já aderiram os jovens, numa adesão maciça que muito contribuiu para a consolidação da sociedade de comunicação em redes.
Assim sendo, é da maior importância a tomada de consciência dos pais sobre a possibilidade de uma orientação benéfica das novas formas de relacionamento e comunicação para o acesso dos jovens à vida social, para o seu desenvolvimento e para sua experiência de participação na vida dos grupos e comunidades. As novas gerações de pais poderão tirar partido dos progressos das tecnologias da comunicação, utilizando-as para facilitar e consolidar o trabalho de formação dos jovens e seu encaminhamento em direção ao mundo adulto, ao espaço público e à cidadania. Já na década de setenta, ao começar a me dedicar ao estudo e solução dos problemas de jovens imigrantes da periferia de Paris, percebi a importância de uma intervenção conjunta dos familiares e dos profissionais da área social e da saúde pública, numa ação comunitária em prol do desenvolvimento desses jovens[3]. Este tipo de trabalho social possibilitou-me abordar o desenvolvimento dos jovens sob vários ângulos, mostrando a relação dos problemas por eles vividos com o conflito entre as gerações, com a dificuldade de acesso à vida pública e ao mundo adulto, com a dependência e o apego ao modo de funcionamento infantil. Comecei a perceber, desde aquela época, como o trabalho social em rede e as novas formas de diálogo podiam contribuir para a superação da situação de dependência dos jovens, abrindo novas possibilidades de enfrentamento conjunto dos problemas por eles vividos.
Ficou claro através desse trabalho social que a violência e até mesmo a delinqüência dos jovens se desenvolvia num contexto onde a crise da família e dos valores se associava às dificuldades vividas pelos jovens, na saída do espaço familiar para o espaço público. Compreendi, então, que a migração havia abalado os alicerces da cultura e da religião dos imigrantes, que sustentava a estrutura familiar deles, a passagem para o espaço público e a construção dos ideais e valores dos jovens imigrantes. A cultura e a religião dos imigrantes constituíam as bases a partir das quais se erguia e se consolidava a construção dos ideais e valores que norteavam o desenvolvimento dos jovens, seu acesso ao mundo adulto e à vida pública. A migração e as aceleradas transformações sociais provocadas pela globalização haviam desencadeado uma ruptura dessas raízes culturais e religiosas, deixando os jovens imigrantes à margem da cultura dominante dos países aonde as famílias vieram se instalar. Eles passaram a viver elementos de diferentes culturas, sem estarem inseridos nem no mundo de onde vieram nem no novo mundo para o qual suas famílias os trouxeram.
Essa marginalização dos jovens imigrantes tem graves conseqüências para a elaboração de suas identidades, de seus valores e ideais, dificultando a superação dos conflitos próprios da passagem para o mundo adulto. Nesse contexto, os impulsos destrutivos emergem vitoriosos, e fracassa o longo processo de formação de um novo ser humano, de construção de uma pessoa adulta e de um novo cidadão. Nesse terreno, viceja a tendência à transgressão das leis, as mais variadas formas de violência e de desrespeito à vida, a presença da morte e a busca sem limite do prazer, que se mistura com a dor e a devastação da personalidade.
Em janeiro de 2010, assisti pela televisão uma filmagem sobre bailes de jovens, na periferia de S. Paulo, onde também transparecia esse transbordamento dos limites. A convocação para os bailes era feita através da rede da internet. Refletindo sobre esta situação à luz da experiência de uso terapêutico das comunidades virtuais, cheguei à conclusão que estas poderiam também contribuir para o encaminhamento dos problemas dos jovens através da formação de redes de relacionamento e da criação de novas formas de utilização do espaço público da internet pelas pessoas envolvidas na formação dos jovens. Minha experiência francesa já havia demonstrado que as relações sociais em rede podem ajudar no enfrentamento conjunto dos problemas dos jovens imigrantes. Defendo, portanto, a idéia que as redes virtuais podem ser de grande auxílio para o estabelecimento de sólidos laços de solidariedade entre pessoas partilhando os mesmos problemas. A sociedade em redes virtuais tendo se tornado um universo cultural propício aos jovens, ela pode também vir a ser cada vez mais um recurso favorável para o seu desenvolvimento.
Na verdade, a organização das relações em rede pode servir tanto para apoiar e facilitar o desenvolvimento psicossocial do jovem como para desencaminhá-lo. No primeiro caso, as redes virtuais precisam, entretanto, estarem ancoradas em redes sociais formadas pelas famílias e por profissionais capazes de contribuir para a formação dos jovens, ajudando-os a equacionarem seus problemas e dando suporte a novas formas de relacionamento que facilitem seu acesso à vida adulta e à cidadania. A passagem para a vida adulta é um momento crucial na vida de todo ser humano e requer a colaboração da família e da sociedade.
Essa colaboração da família e da sociedade com o jovem orientando-o na passagem para a vida adulta foi afetada negativamente pelo atual esfacelamento e fechamento social e familiar dos jovens. Desse modo, eles se encontram isolados e separados dos adultos, num momento em que precisariam do pulso forte e amigo dos pais para a realização bem sucedida dessa passagem. Muitos familiares em crise permanecem temerosos ou fascinados diante dos transgressores, tendo dificuldade em assumir a posição de uma autoridade capaz de encaminhar a solução dos conflitos entre as gerações. Meu estudo histórico da passagem à vida adulta mostrou-me a relevância da associação entre os pais, nas sociedades antigas e tradicionais, para melhor enfrentarem socialmente o natural conflito entre as gerações.
PASSAGEM DO ESPAÇO FAMILIAR AO ESPAÇO PÚBLICO E À CIDADANIA
A associação entre os pais é que conduzia e orientava os antigos rituais de passagem para a vida adulta. Restam poucos resquícios desses rituais, mas a formação de redes entre os adultos responsáveis pelo ingresso desses jovens na vida social pode permitir utilizar os recursos da internet para a comunicação e solidificação da autoridade familiar e dos laços familiares e sociais dos jovens. Este reforço da autoridade familiar não deve, contudo, ser confundido com a defesa da postura autoritária de alguns pais, podendo ocorrer pelo estabelecimento do diálogo entre os pais, os trabalhadores sociais e os filhos. Não se trata, nesse caso, de um diálogo entre iguais, nem ele pode ser reduzido a uma simples conversa entre amigos, na qual se anula a diferença de posições[4].
É preciso deixar claro que os jovens sozinhos não têm como enfrentar a força dos próprios impulsos, de entendê-los e encaminha-los positivamente, fora do processo social que sustenta essa passagem da infância para o mundo adulto e do espaço familiar para o espaço público. A construção de um novo ser humano se realiza socialmente. Os jovens precisam de modelos, de orientação e da colaboração dos pais e educadores, que os apóiem no enfrentamento das forças psíquicas que emergem nessa etapa do desenvolvimento. A delimitação e a reorientação do impulso humano é uma das principais tarefas da formação dos jovens, e pode ser conseguida pela abertura e aprofundamento do diálogo, com base na fortificação dos laços de solidariedade familiar e comunitária. Tal trabalho social com jovens pode também ser favorecido por uma nova mentalidade pública a este respeito, e os meios de comunicação têm aqui um papel a desempenhar na informação e formação do público.
Quando iniciei um trabalho com jovens, ao voltar ao Brasil, no início dos anos oitenta, contavam-se nos dedos o número de jovens de favelas cariocas envolvidos com o tráfico de drogas. Muitas vezes, fui às escolas e associações de bairro procurando um apoio mais amplo das famílias da classe média para esse trabalho, mas esses pais se mostraram fechados e preocupados apenas com a educação dos próprios filhos. Uma maior consciência da importância da abordagem conjunta do problema do acesso dos jovens à vida adulta e ao espaço público poderia ser veiculada pelos diferentes meios de comunicação social. Estes podem se integrar à rede de pessoas envolvidas nesse trabalho com os jovens, ampliando e facilitando a formação à cidadania[5]. Para isto, é, contudo, fundamental, melhor entender o processo psicossocial de desenvolvimento dos jovens e sua relação com a passagem do espaço mais fechado da família para o espaço público e a cidadania.
As notícias sobre as revoltas de jovens, em diferentes países, e o clamor destes pelo reconhecimento e pela integração ao espaço público chamaram minha atenção para estas questões. A escuta do que dizem esses jovens marginalizados mostra que estes não almejam apenas o acesso aos bens materiais e ao trabalho. Eles manifestam o sentimento de não serem integrados ao espaço público, reivindicando um reconhecimento social que muitas vezes só conseguem nas organizações marginais. A antiga filosofia grega aprofunda a reflexão sobre a relação entre a condição humana, a vida adulta e a comunidade dos cidadãos. Foi a partir dessa reflexão, que compreendi a importância de uma formação dos jovens baseada na ordenação dos impulsos, na inserção na vida pública e na valorização da cidadania.
Esta formação é claramente formulada e considerada como fundamental para a passagem à vida adulta, na Grécia Antiga. Platão[6] e outros filósofos gregos ligam a realização do ser à relação com o outro, nos quadros da vida comunitária dos cidadãos das cidades gregas, salientando a estreita relação entre a educação dos jovens, a ordenação dos desejos e a realização mais harmoniosa entre os cidadãos. Relendo o mito dos Titãs, pode-se acompanhar a narração simbólica do desenvolvimento dos impulsos humanos e melhor compreender a ligação que a filosofia grega estabeleceu entre o domínio das paixões e a passagem dos jovens à vida pública. A psicologia moderna ajuda ainda mais a entender este processo. No mundo infantil, os impulsos não estão ainda delimitados e ordenados segundo os lugares e relações do mundo adulto. O processo de maturação, de delimitação e de ordenação dos impulsos é longo e culmina com uma integração entre o desenvolvimento afetivo e intelectual, na entrada da criança na etapa da juventude, quando o desenvolvimento do pensamento abstrato permite que os impulsos passem a ser orientados pelos ideais.
Nesse processo de desenvolvimento, os jovens têm que superar os conflitos entre pais e filhos, desligar-se dos pais, sair da família de origem para formar uma nova família, aceder à posição dos pais e entrar no espaço público ou na vida em comunidade, tornando-se novos cidadãos. O mito grego dos Titãs descreve o processo de mudança dos conflitos destrutivos entre pais e filhos em conflitos regidos pelo acordo estabelecido entre os deuses do Olímpio. Estes representam os ideais que norteiam a vida dos membros da comunidade dos cidadãos, enquanto os Titãs representam os impulsos agressivos e sem limites, a tendência à transgressão e à revolta. Como mostra essa narração grega, os filósofos que refletiram sobre o assunto e minhas pesquisas com os jovens imigrantes, a passagem para o mundo adulto exige que os impulsos passem a ser orientados pelos ideais, de modo a servir ao bem comum e à vida em comum entre os cidadãos[7].
Os atuais noticiários dos jornais e da internet andam cheios de histórias de jovens identificados como “bandidos playboys”. Um caso recente, que virou manchete, em abril de 2012, por exemplo, é o de um jovem de 19 anos, Bruno Rodrigues, que ganhou o apelido de “playboy do crime” por ter a aparência e a vida de um playboy à custa de vários tipos de crimes. Ele foi pintado como alguém que gosta de roupas caras, de motos potentes, da vida noturna, e que roubava e matava para poder se divertir com amigos e mulheres. Tendo aderido, nessa etapa da juventude, à atual sociedade de consumo, ele seguia, portanto, o padrão dos jovens das classes mais ricas, cometendo crimes para manter essa identidade. Como ele, muitos jovens de baixa renda vão trabalhar para o tráfico de drogas para poder ter um acesso mais fácil ao universo do consumo, enquanto outros jovens marginais podem até matar por um tênis de marca ou um celular.
Pesquisando sistematicamente essas notícias e as informações na internet, pude acompanhar a transformação na construção dos valores e ideais desses jovens, verificando que o ideal deles se afastou dos antigos ideais humanos cultivados desde a antiguidade. Compreendi que as aspirações materiais haviam tomado o lugar dos antigos ideais de construção de um novo ser humano. Os ideais materiais perseguidos com fervor pelos jovens de nossa época correspondem, na verdade, aos ideais da sociedade de consumo voltada para a aquisição de bens materiais. Com base no desejo de conquista desses bens é que os jovens agora constroem sua identidade e buscam se inserir socialmente. Ouvi vários relatos de pais e mães que são trabalhadores honestos e esforçados na educação dos filhos, e ficam desesperados quando percebem que esses estão trocando o ganho do trabalho pelo ganho aparentemente mais fácil do crime e do tráfico.
Eles se sentem impotentes diante da pressão social nessa direção, e temem que essa forma de vida venha, mais cedo ou mais tarde, a conduzir seus filhos a um destino de morte e destruição. Para nossa reflexão, é importante observar, com base no estudo histórico, que mesmo nas sociedades ditas pagãs, a formação dos jovens sempre foi baseada não apenas em ideais puramente materiais, mas em valores do espírito que moldavam o caráter dos jovens. Embora nem sempre associados a um caminho espiritual, os ideais da juventude tinham, portanto, um cunho humanista e uma proposta de elevação do ser humano voltada para o bem. Assim aconteceu também nas sociedades socialistas e comunistas que adotaram uma ideologia materialista, porém cultivaram os ideais de um novo tipo de ser humano e uma nova proposta de vida comunitária. A sociedade capitalista globalizada proporcionou à humanidade grandes avanços em várias áreas, e pode-se dizer que as atuais relações sociais são em muitos aspectos mais humanas do que as que predominavam na época da escravidão, da servidão feudal ou do início do capitalismo. Ela destruiu, contudo, as bases do longo processo civilizatório anterior, colocando como bem supremo a aquisição de bens de consumo material.
Não é nosso objetivo, nessa apresentação, defender ou criticar o regime capitalista, mas partilhar o resultado de uma análise histórica pela qual se verifica que, em nenhuma sociedade anterior, os bens materiais foram tão exaltados e apresentados como fontes de realização humana, de reconhecimento social e de felicidade. A filosofia deu uma enorme contribuição ao demonstrar que o ter não poderia, de modo algum, levar à realização do ser nem possibilitar o desenvolvimento psíquico e espiritual, que nele deveria estar enraizado. Em nenhum outro momento histórico anterior ao nosso, a corrida para a obtenção e troca dos bens materiais foi tão amplamente valorizada, não sendo, portanto, de admirar que os desejos atuais dos jovens tenham também sido voltados para sua aquisição a qualquer preço. Essa desumanização dos jovens foi também acompanhada pela multiplicação da violência e do desrespeito entre eles, não só em suas relações de grupo como também na relação entre as gerações. Pude presenciar, desde minha infância e no trabalho clínico, relações agressivas entre crianças e jovens, tendo vivido e observado experiências de ameaça, escárnio e injúria, que podem ser consideradas precursoras do atual bullying.
A violência e o sadismo entre os jovens não tinham, contudo, a abrangência social que têm hoje, nem os professores e pais eram agredidos fisicamente ou mortos como acontece cada vez com mais freqüência. É evidente que o desejo de bens materiais ou de poder sobre o outro, a violência e o conflito de gerações sempre existiram ao longo da história humana. Contudo, a educação dos jovens, a filosofia e as diferentes religiões sempre cultivaram e valorizaram a transmissão dos ideais do espírito. As propostas espirituais ou materialistas de cultivo de ideais do espírito para a formação da juventude não desapareceram do cenário das sociedades de consumo, mas não representam mais a tendência dominante.
Em contraponto a diferentes tendências atuais, que acenam aos jovens com uma miragem de liberação da autoridade e das convenções, conduzindo-os por caminhos que os levam à escravidão dos impulsos e à evasão da realidade social, pude acompanhar de perto alguns exemplos de experiências de formação de jovens com base nos ideais do espírito, como os anteriormente já citados, em organizações políticas movidas pelo desejo de transformação do mundo, nos grupos de ioga ou em grupos católicos e evangélicos. Nesses grupos religiosos, espiritualistas ou politicamente engajados pude constatar a existência de um esforço no sentido da orientação dos jovens para ideais humanos e espirituais mais elevados, assim como propostas apoiando-os direta ou indiretamente no acesso à vida em comunidade e à posição adulta.
CONCLUSÃO
Cheguei, portanto, à conclusão que o problema da revolta atual dos jovens e a vitória sobre os impulsos agressivos e a violência podem ser enfrentados coletivamente pela participação em grupos que possibilitem a orientação dos jovens com base numa elaboração de ideais mais elevados, que podem ter um enfoque espiritualista, religioso ou materialista – conforme a convicção de cada um. A formação de redes sociais e as associações comunitárias podem também dar sua contribuição nessa direção.
De qualquer modo, mais do que nunca essa batalha requer um esforço social conjunto, tendo em vista uma superação dos conflitos entre pais e filhos que permita a sucessão das gerações e a vida
Em síntese, posso dizer que considero a juventude como uma etapa de passagem da infância para a vida adulta, implicando um conjunto de transformações fundamentais na construção de um novo ser social. Nesse momento do desenvolvimento humano, observa-se uma profunda crise dos jovens que se manifesta na instabilidade corporal e afetiva, nos problemas de construção da identidade e de agressividade e na formação do pensamento abstrato. Essa passagem exige uma série de complexas mudanças de posições. Não ocorre apenas uma mudança da posição de criança para a posição de adulto, mas também uma mudança das posições nas relações familiares e entre as gerações, mudanças de posições nas relações com as outras pessoas fora da família (nas relações sexuais, de estudo e trabalho), mudanças de posições no espaço público (poder dirigir, votar, etc.). Meu enfoque dessa passagem para o mundo adulto leva em consideração essas transformações e mudanças de posições, de relações e de deslocamentos entre diferentes tipos de espaço, sobretudo a passagem do espaço familiar para o espaço público. Cabe aos pais e educadores a tarefa de ajudarem os jovens a ampliarem suas relações, estabelecerem novos contatos e entrarem em novos grupos e espaços.
Para que os pais e adultos exercerem esse papel, é preciso, entretanto, superar os conflitos familiares e as lutas de domínio e controle do outro dentro das famílias. Em meu trabalho clínico e social, passei a estar atenta ao percurso do desenrolar desta luta, no interior das famílias, dando especial atenção ao processo de ordenação dos impulsos, que está diretamente relacionado à resolução do conflito familiar. Situando o conjunto destes fatores no quadro geral do conflito entre as gerações e de mudança de posições é que pude melhor entender passagem para a vida adulta. O núcleo central desta passagem resulta da mudança da posição filial para a posição de adultos como os pais. Ela não ocorre pela tentativa de tomar o lugar deles, mas, ao contrário, pelo reconhecimento e respeito desse lugar e por um processo de identificação com os pais, de separação da família e ingresso dos jovens, no espaço público, para se tornarem novos membros da comunidade social.
A saída do universo infantil, de suas relações e de seus valores se realiza pela mudança de lugares na sucessão das gerações e pelo acesso dos filhos ao grupo dos adultos. A necessidade de abandonar os antigos laços afetivos, de deixar o estado de dependência e proteção dos pais e ocupar uma posição igual a deles, no universo adulto, gera uma natural situação de conflito. Este pode tomar a forma de uma revolta mais ou menos acentuada contra a autoridade dos pais e contra os símbolos que os revestem, de modo a construir a própria identidade e se emancipar dos laços familiares. Após esta passagem à vida adulta e a entrada dos jovens no espaço público dos cidadãos, as revoltas e as lutas destrutivas são substituídas por novas formas de encaminhar os conflitos Estes não desaparecem, mas passam a ser orquestrados por princípios, valores e ideais da vida em comunidade, que eram, na Grécia Antiga, simbolizados pelos diferentes deuses do Olimpio.
O processo aqui descrito é vivido de diferentes formas por cada jovem, no desenrolar do seu desenvolvimento, de sua história pessoal e familiar, de seu grupo e de sua cultura Ao deixar a infância, cada ser humano experimenta dentro de si o ímpeto dos impulsos titânicos, vive a revolta contra os pais, enfrentando o desafio de ingressar na ordem social. Seguindo ideais mais elevados, podem, então, os jovens aceitarem e transformarem as leis do mundo adulto, vindo a ocupar um lugar dentro dele. No mundo contemporâneo, esta passagem foi sendo diluída e prolongada por profundas transformações sociais e familiares, que abalaram a autoridade dos pais e enfraqueceram os laços familiares, levando a uma crise nos modos de elaboração desta passagem para a vida adulta.
Quando esta passagem não é bem sucedida, o jovem continua regido pelos princípios autoritários e indiferenciados dos titãs[8], perde o acesso ao universo dos ideais olímpicos, e não finaliza o processo de identificação que lhe permite tornar-se um adulto e assumir o lugar que lhe cabe na sucessão das gerações e na vida comunitária. A globalização capitalista, suas aceleradas mudanças tecnológicas e sociais, as grandes migrações que provocaram e o modo de funcionamento de sua sociedade de consumo de massa abalaram as bases culturais e religiosas que sustentavam esse delicado processo civilizatório de criação de um novo ser social, na passagem da infância para a vida adulta. Nada impede, entretanto, que novas bases possam ser paulatinamente elaboradas levando em consideração as experiências acumuladas ao longo da história e renovando-as para a construção de um mundo novo.
É importante, portanto, continuar acompanhando estas transformações, permanecendo atento às manifestações dos modos titânicos e violentos de resolver os conflitos, em particular entre pais e filhos. A importância crescente da cultura de diálogo aumenta as possibilidades do encaminhamento e superação dos conflitos, e as novas tecnologias da sociedade em redes podem nos ajudar a acompanhar e transformar este processo pela criação de uma nova forma de espaço público que facilite a abertura e ampliação da comunicação, a formação de novos laços e a participação em diversos tipos de comunidades virtuais. É possível utilizar estes novos recursos para ajudar os jovens na mudança de espaços acima indicada, sobretudo na passagem do espaço familiar fechado para o imenso espaço público virtual surgido com a internet. É preciso repensar o papel da associação dos pais, neste novo contexto, passando a utilizar também estes novos recursos para a formação de comunidades virtuais de pais voltadas para o desenvolvimento dos jovens. A sociedade em redes abre, portanto, novas e interessantes perspectivas para a abordagem do desenvolvimento dos jovens!
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[1] Em outubro de 2011, o Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) promoveu em São Paulo o encontro “Política 2.0: Uma nova forma de fazer política?” para discutir como os novos canais de organização e de expressão, impulsionados pelo potencial que a internet oferece de troca de informações e ideias, representam uma nova forma de fazer política. No evento, foram divulgados os resultados de uma pesquisa qualitativa “Investigações sobre uma política cidadã – reflexões e caminhos”, que foi encomendada pelo IDS à empresa Ideafix, realizado com 100 jovens entre 18 e 25 anos, na qual fica claro o interesse maior dos jovens por ideais como o da respeitabilidade. Os trabalhos desse instituto revelam uma nova forma de política pela qual, em vez de uma participação latente que emerge somente em época de eleições, os jovens se engajam em causas sociais, ambientais e culturais.
[2] Minha observação tem acompanhado mais o trabalho da Igreja Católica, nas paróquias que freqüento ou nos encontros do Papa com a juventude, porém tenho informações na mesma direção em grupos evangélicos, como os grupos corais formados por meu professor de canto, em Itu.
[3] Nesta época, tratava-se ainda de uma rede social constituída por diferentes equipes do Departamento de Ação Social e Saúde (DASS), que eram distribuídas por diferentes setores urbanos e atuavam em conjunto numa mesma área da cidade. Esta forma de organização em setor surgiu, na França através da influência de psiquiatras marxistas (Tosquelles, Daumezon e Bonnafé) com base na organização de uma rede (réseau) da Resistência francesa, durante a Segunda Grande Guerra. Esta forma de organização setorial tendo como base uma rede social foi adotada oficialmente pelo governo francês, na década de setenta, e perdura até hoje.
[4] Trata-se de um diálogo entre pessoas ocupando diferentes posições e funções dentro da estrutura familiar, e tendo responsabilidades diversas no enfrentamento conjunto dos impulsos agressivos e das tendências destrutivas que emergem na adolescência.
[5] É evidente que os meios de comunicação podem tanto contribuir para a formação e desenvolvimento dos jovens como agir no sentido contrário, mas aqui tento mostrar a possibilidade de utilização dos novos recursos da comunicação para o desenvolvimento.
[6] Platão preocupa-se com uma educação política que transmita, desde a infância até a vida adulta, as opiniões verdadeiras sobre o belo, o bem e o justo, ensinando os jovens a amarem a virtude e a moderação. Propõe que os cidadãos sejam educados a ultrapassarem a multiplicidade anárquica de seus desejos e a ordenarem suas relações de modo a favorecer a felicidade dos cidadãos e a consolidação de seus laços de amizade. No processo de unificação do ser, considera Eros como fundamental, propondo apenas a limitação e ordenação dos desejos e não a sua supressão ou negação.
[7] Alguns filmes mais recentes (como, por exemplo, o “Avatar”) dão uma contribuição semelhante para a elaboração dos valores, ideais e identidades da juventude, delineando novas formas de relação, novos valores e ideais de vida, construindo imagens que contribuem para a construção da identidade e para a formulação de novos modos de relação e de vida social.
[8] O modo de funcionamento do universo titânico pode ser observado com mais clareza nos bandos de jovens regidos pelo modo de funcionamento dos impulsos primitivos, e com a generalização destas dificuldades encontram-se cada vez mais adultos que são eternos adolescentes, num mundo cada vez mais sem limites.
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