(A Doutora Olga Sodré trabalha atualmente como psicóloga clínica e psicóloga social (CRP - 5/6371), é doutora em filosofia (Paris - Sorbonne), com tese sobre a filosofia indiana, e doutora em psicologia clínica, pela PUC-Rio, com tese sobre o diálogo inter-religioso monástico. Tem pós-doutorado em filosofia (Instituto Católico de Paris), pós-doutorado, no Instituto de Medicina Social da UERJ, e integra o Grupo de Trabalho Psicologia e Religião da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia)).
1. INÍCIO DO DIÁLOGO E CONFRONTO COM O MATERIALISMO E A FÉ
Sinto-me profundamente enraizada na espiritualidade do diálogo de experiência, pois ela me permitiu uma síntese pessoal de uma longa caminhada através de diferentes tradições religiosas, nas quais fui realizando minha busca de Deus e aprofundando meu percurso espiritual até encontrar o diálogo monástico através do qual consegui vislumbrar a unidade desse multifacetado percurso. O desafio de me confrontar com estes diferentes caminhos e minha formação universitária exigiram de mim um esforço de compreensão que me levaram a pensar as questões do diálogo e da experiência espiritual, meditando sobre o assunto e seu sentido na situação do mundo em que vivemos. Nesse artigo para o Dilato Corde, proponho-me a resumir minhas principais experiências nessa direção, integrando-as às reflexões teóricas e às pesquisas que me suscitaram. Procurarei mostrar através do relato de minha história de vida que essas experiências espirituais refletem bem a situação do cristianismo no contexto do mundo atual, pondo, contudo, em evidência a presença de algo que escapa a esse contexto. Meditando sobre minha vida, consigo perceber que essa Presença orientou minha existência ao longo da caminhada por diferentes religiões em direção ao diálogo e à contemplação de Deus.
Na raiz de minha história de vida encontra-se não apenas a experiência de um diálogo infantil com Deus, mas também de um diálogo entre o materialismo e a fé cristã, de modo que me parece fundamental partir dessa experiência, a fim de melhor esclarecer o meu percurso e ilustrar meus pontos de vista a esse respeito. Nasci em uma família de formação católica, mas que se afastou da fé. Minha avó materna tornou-se espírita, meu pai materialista e minha mãe era uma católica não praticante. Embora meus parentes tenham se distanciado do cristianismo, meus pais se casaram na Igreja Católica e fui batizada. Inicialmente, colocaram-me num colégio particular não religioso, mas no qual recebi informação religiosa. Quando estava no primeiro ano escolar, foi me oferecida a possibilidade de fazer a primeira comunhão, e esse foi, sem dúvida, um momento crucial em minha vida e interessante para a presente reflexão, pois nele surge algo que extrapola meu contexto social. Nesse caso, a primeira comunhão não era obrigatória e nem todas as crianças responderam afirmativamente ao convite, mas me senti como que chamada para esse importante acontecimento religioso.
Foi um dos momentos no qual percebi claramente um impulso para Deus. Desse modo, parece-me evidente que, desde criança, e independentemente do meu contexto familiar, tive uma forte inclinação para Deus, que se revelou mais tarde como um intenso desejo e uma busca espiritual. Através do estudo de diferentes religiões, pude posteriormente não apenas melhor entender este impulso ou inclinação como um desejo de Deus, mas também encontrar uma explicação para o arrebatamento, enlevo e encanto experimentado em minhas singelas conversas com Deus. Foi um conforto descobrir que outras pessoas sentem o mesmo impulso e poder refletir sobre essa relação com Deus, considerada por muitas pessoas como algo imaginário e fora da realidade. O estudo permitiu-me constatar que apesar do contado com o divino ter começado de uma forma infantil, tratava-se, desde o começo, de um profundo e verdadeiro diálogo com Deus.
Vejo-me ainda pequena, querendo muito a experiência da primeira comunhão e insistindo para poder realizá-la. Não sei por que queria tanto, mas me lembro perfeitamente que o desejo era intenso e me levou, embora uma criança dócil e introvertida, a ir contra a orientação da minha família. Meus pais me explicaram que eu já fora batizada, e que a comunhão não era necessária, procurando em vão me dissuadir. Continuei insistindo de um modo que não era habitual em mim. Minha mãe ficou surpresa com o meu empenho. Lembro-me, até hoje, que a atmosfera entre nós era cordial, e que ela exprimia simplesmente seu ponto de vista. Ela achou até graça desse empenho e acabou concordando. A eclosão desse impulso germinaria mais tarde através do ensino religioso, mas acho importante o fato que ele tenha brotado do meu coração de uma forma intensa e espontânea que nada tinha a ver com o meio escolar ou familiar.
Esse impulso gerou uma intensa experiência espiritual infantil, revelando em mim a tendência humana para a busca do divino. Em outras ocasiões da vida, este impulso voltaria a se manifestar e me levaria a uma busca espiritual por diferentes caminhos, cada vez mais independentemente do contexto intelectual no qual fui formada e ao qual continuei integrada. A partir desse impulso, a experiência espiritual tornou-se intensa, ao longo de toda minha infância, o que se traduzia pelo fato de eu preferir mais “conversar com Deus” do que brincar. Eu brincava também, mas o momento importante e secreto do meu dia era quando eu me recolhia para essa conversa. Pouco a pouco, acabei considerando Deus o meu melhor amigo. Os psicólogos falam muito sobre o “amigo imaginário”, que as crianças têm na infância. Não sei, porém, se é muito freqüente a escolha de Deus como o melhor amigo. Não me recordo, também, quem me falou de Deus pela primeira vez, nem que alguém tenha me ensinado a “conversar com Deus”. De qualquer maneira, eu tinha um modo próprio de conversar com Ele, que era caracteristicamente infantil. Como gostava muito de histórias, eu sempre começava a conversa contando histórias para Deus.
Nessa época, Deus não tinha para mim uma forma precisa. Sentia - O como uma presença e só sei que essa Presença era imensa, bastante suave e sempre muito rica e variada. Parecia-me uma pessoa (pois eu O considerava um amigo), mas que era, ao mesmo tempo, enorme e sem forma definida. Recordo-me da sensação de ser como que elevada por algo semelhante a uma enorme mão, e ficar como que flutuando. Eu gostava também de me deitar na grama, olhando o céu, e sentir-me como que me dissolvendo no azul. Anos mais tarde, ao aprofundar meu estudo da meditação da ioga, descobri serem essas experiências relatadas por pessoas que atingem estados avançados de meditação. Para mim, contudo, essas experiências ocorreram de forma natural, e vejo nisso uma graça e um chamado para a vida contemplativa.
Por volta dos sete ou oito anos, ocorreu outro fato importante em relação a essa “conversa com Deus”. Assisti a um filme que muito me impressionou sobre a vida de Joana d’Arc, com Ingrid Bergman no papel principal. Identifiquei-me com ela a partir do relato de suas experiências espirituais, que correspondiam às minhas “conversas com Deus”. Atraiu-me também a sua fé, o modo como enfrentava as autoridades do mundo e sua capacidade de luta. Ela passou a fazer parte de meu universo infantil e eu gostava de “brincar de Joana d’Arc”. Nessa época, quando me perguntavam o que queria ser quando crescesse, respondia para espanto geral que queria ser Joana d’Arc. Eu não sabia ainda que tal escolha pudesse estar relacionada com o desejo de ser santa. Para os adultos em torno de mim, isto fazia ainda menos sentido, de modo que começaram simplesmente a dizer que eu era mesmo parecida com Ingrid Bergman.
Não sei se partilhei minhas experiências espirituais com alguém, na infância. Acho que permaneceram secretas, e só fui me recordar delas, anos mais tarde, ao aprofundar minha experiência interior em psicoterapia e na meditação. Percebi, então, que já meditava, quando criança. As experiências espirituais infantis foram assim integradas às minhas práticas espirituais de adulta. Não sei, também, como as experiências infantis se interromperam, mas me pergunto se essa interrupção não teve algo a ver com a importância crescente do pensamento racional e com o ensino escolar. Digo isso, por que meu mergulho interior, durante um processo psicanalítico, parece ter sacudido minha construção racional, possibilitado uma emergência dessas experiências. Só sei que elas ficaram sepultadas durante anos, e que o final da minha infância, após os nove anos, se escoou tranqüilamente, na brincadeira e no estudo, apesar de, nessa época, eu já estar estudando num colégio católico. Nesse período, recebi uma catequese que resumia os princípios e idéias da doutrina cristã e acabei, mas acabei esquecendo minhas experiências contemplativas.
Minha aproximação com o materialismo começou quando entrei na adolescência e passei a colocar questões para meu pai sobre a vida e o mundo em que vivíamos. Começou, então, um diálogo entre materialismo e fé, que foi bastante enriquecedor e me abriu novos horizontes. Conversando com meu pai, descobri que ele era materialista e comecei a procurar entender o que isso significava e a questioná-lo a respeito. Fiquei, então, dividida entre as explicações religiosas e as explicações materialistas. Nesse período de minha vida, após os anos cinquenta, eu estudava num colégio religioso das Beneditinas Missionárias de Tutzing, no Rio de Janeiro, e me interessava muito pela Bíblia, tendo ganhado, inclusive, um concurso bíblico entre os vários colégios cariocas. Olhando retrospectivamente, parece-me, no entanto, que minha fé já não tinha mais raízes nem numa experiência espiritual nem numa fundamentação racional mais sólida. Recebi dessas beneditinas uma excelente formação humana e religiosa, que não me transmitiu, no entanto, os fundamentos da contemplação beneditina nem me preparou para o embate da fé com um mundo em intensa transformação.
Assim sendo, num primeiro momento, o materialismo sobrepujou essa fé sem sólidos alicerces e eu me afastei de Deus e da religião católica. Empolgada pelo meu envolvimento com a vida intelectual, amorosa e política, só anos mais tarde percebi o vazio interior deixado por esse afastamento. Apesar dos erros cometidos em função desse afastamento, considero que o diálogo com meu pai em torno da questão do materialismo e da fé foi muito importante para minha formação, sobretudo, pelo seu caráter profundamente democrático. Ele não tentou me convencer de modo impositivo, mas pelo estudo dos autores aos quais me introduziu. A ausência de autoritarismo, de pretensão sobre as próprias idéias e o estímulo, para que eu fizesse minhas próprias opções de forma autônoma, propiciaram-me uma experiência positiva do diálogo com o materialismo. Esse diálogo e o interesse que me despertou pela ciência levaram-me a considerar, até hoje, como muito estimulante e frutífero o intercâmbio entre materialismo e fé ou entre ciência e religião.
Devo, portanto, a meu pai minha introdução ao diálogo, mas tive que fazer uma longa caminhada até sair do diálogo no plano das idéias, aprender a lidar com as tendências autoritárias e destrutivas tanto fora como dentro de mim e chegar ao diálogo de experiência no reconhecimento de si mesmo e do outro. Foi preciso dar vários passos antes de tomar consciência desse nível do diálogo, que só ficou realmente mais claro para mim quando encontrei os monges do DIM. Descobri ao longo dessa caminhada que o combate para a superação das tendências de dominação e destruição não pode ser apenas externo ou limitar-se ao mundo das idéias. Ele é também um combate interior para enfrentar as tendências e forças destrutivas presentes em todos os seres humanos. O diálogo implica um percurso no desenvolvimento da relação com o outro, uma longa aprendizagem, um combate permanente para a transformação dos conflitos destrutivos em conflitos construtivos até se começar a desenvolver relações amorosas de reconhecimento mútuo.
Ainda no final da minha adolescência, ao ingressar na atividade política, tive a ocasião de encontrar outros materialistas, que me pareceram pessoas íntegras e com grandes qualidades humanas, embora tenha notado, ao refletir sobre elas posteriormente, que havia nelas e inclusive em meu pai, uma ausência da luz espiritual que passei a conhecer melhor pelo aprofundamento do contato com a espiritualidade. Distingo, portanto, o materialismo humanista e idealista dessas pessoas do materialismo consumista e pagão que se alastra pelo mundo contemporâneo
. Meu retorno à espiritualidade, anos mais tarde, foi para mim fundamental, mas o contato com o materialismo humanista me permitiu melhor enfrentar esse outro tipo de materialismo. A sólida formação materialista recebida, em casa, continuou sendo muito útil não apenas no campo da pesquisa científica, mas também para a compreensão da minha época e para o diálogo com o meio intelectual, profundamente marcado pelo materialismo. Pude manter, desse modo, ao longo da vida, um diálogo positivo entre materialismo e fé, sobretudo, após ter reacendido a chama da fé em meu coração. Minha experiência de um impulso primordial para Deus e a experiência da orientação posterior do meu impulso para a vida material e sexual levaram-me a refletir muito sobre a questão do impulso e do desejo, na vida no mundo e na relação com Deus.
2. EROS ENTRE OS DESEJOS DO MUNDO E O DESEJO DE DEUS
Minha ruptura com a religião, no final da adolescência, tem suas raízes em problemas, que começavam apenas a emergir, nos anos cinquenta, e que não cessaram de tomar proporções cada vez maiores, até os dias de hoje. Olhando retrospectivamente minha própria caminhada, percebo que lidei de modo diverso com esses problemas ao adotar, no final dos anos cinquenta, uma perspectiva materialista e ao retomar, no final dos anos setenta, a perspectiva espiritual. Nos anos sessenta, ingressei na universidade e vivíamos, no Brasil, um momento de grande efervescência social e política, que despertou em mim um forte desejo de mudar o mundo e as relações entre as pessoas. De modo sucinto, pode-se dizer que minhas divergências com a religião se situavam no campo político e no campo amoroso. As religiosas do colégio beneditino, onde estudava na época, pareciam-me alheias e defasadas em relação às questões colocadas pelas mudanças sociais em curso. As lutas feministas, a emancipação da mulher, as mudanças nas relações sexuais e a crise na família começavam a crescer e meu ingresso no meio intelectual me levou a tomar parte ativa nesse processo, num rumo diverso ao apontado pela religião católica.
No fundo, eu procurava lidar com meus próprios impulsos e desejos, o que só foi sendo conseguido através de uma longa caminhada pela psicologia profunda e pela espiritualidade. Assim sendo, não acredito que se possa dialogar com o jovem e com as pessoas em geral, na atualidade, sem abordar de frente essa questão e, sobretudo, sem ter lidado com os próprios impulsos e se sentir espiritualmente confortável a esse respeito. Anos mais tarde, ao estudar a filosofia e a espiritualidade indiana (Sodré, 1985 e 1989)
, interessei-me por uma teoria do impulso primordial da consciência para o divino
. Essa teoria se refere a um desejo livre e criativo. Nele não há ainda o apego a um objeto, mas apenas um impulso de vida, de criação e de amor, que nasce do âmago do ser. Em geral, a reflexão sobre o desejo é relacionada pela filosofia e pela psicologia da ioga ao desejo de objetos (
raga) e à fantasia do mundo (
Maya), mas os mestres da corrente filosófica e espiritual por mim estudada distinguem bem o desejo de Deus daqueles suscitados pelos diferentes objetos que nos cercam, situando esse desejo na raiz do impulso e em relação ao divino
.
A experiência do contato com Deus, na infância, e a frustração experimentada na busca humana de satisfação através dos objetos ajudaram-me a entender a explicação dos mestres da ioga a respeito da diferença existente entre o tipo de satisfação proporcionada pela busca de objetos e o estado de felicidade no repouso em Deus. A meditação da ioga me ajudou a compreender que o ser humano almeja a esse estado de felicidade, e que ele não pode ser conseguido por nenhuma realização desse mundo. Pude vivenciar que as demais conquistas fornecem apenas uma satisfação passageira, o que provoca uma corrida incessante atrás de novos objetos. As práticas espirituais e o conhecimento da dinâmica do desejo me possibilitaram, portanto, distinguir paulatinamente a diferença entre a satisfação de um contato profundo com Deus dos outros tipos de satisfação do mundo.
Fui assim aprendendo a lidar com meus impulsos, a descobrir a importância, o sentido e a grandeza do desejo humano, ampliando meu contato com a força e a criatividade de um impulso livre, que não está condicionado pelos interesses externos e está enraizado em sua fonte divina. Cheguei, então, à conclusão que o ensino religioso não pode ser baseado apenas em idéias e proibições, mas precisa estar baseado na experiência do contato direto com Deus, de modo a liberar o impulso humano e conduzi-lo através de um processo de desenvolvimento espiritual. Em diferentes tradições religiosas, esse desenvolvimento é descrito como uma ascensão, sendo freqüentemente associada aos símbolos da montanha, da aspiral ou da escada. Foi, entretanto, na própria Bíblia e no ensinamento beneditino que encontrei as mais belas explicações a esse respeito, e lamento que elas não sirvam de base à catequese ensinada aos nossos jovens.
Um dos grandes desafios da religião parece-me estar justamente na maneira de lidar com os impulsos e desejos, apresentando uma perspectiva amorosa, que seja realmente uma alternativa em face de uma sociedade materialista e consumista. Não basta ditar regras de conduta, é preciso mostrar que a dimensão erótica do ser humano está relacionada à força de vida, tem uma dimensão espiritual e uma função fundamental na relação com Deus. Foi só quando entrei em contato com a vida dos santos, que percebi o sentido e a possibilidade de redirecionar minha tendência apaixonada para uma plenitude muito maior de ser e amar. Compreendi, então, que a força vital pode ser desperdiçada na multiplicação incessante dos desejos ou ser unificada e redirecionada para a própria fonte do amor. Essa descoberta ocorreu inicialmente na Índia, pelo conhecimento de santos hindus, mas provocou um retorno ao cristianismo, seguindo as pegadas dos santos cristãos apaixonados por Deus. Minhas pesquisas sobre o desenvolvimento espiritual partiram do estudo do amor apaixonado dos santos por Deus. Eles me revelaram através dessa paixão e de sua manifestação em suas naturezas extremas, uma dimensão do divino, muito maior do que a pequenez dos recipientes humanos pode produzir ou mesmo imaginar. Contemplando os dons que os santos manifestaram, os milagres e obras que realizaram, é possível vislumbrar a fonte mesma de onde brotaram essas realizações e perceber um amor que transborda e transforma o próprio recipiente.
Meu retorno à vida espiritual, após muitos anos de afastamento e recobrimento do impulso espiritual pelo materialismo, ocorreu por ocasião de minha primeira visita à Terra Santa. Vivia, então, na França e trabalhava na UNESCO e num Laboratório de Psicologia Social. Fui como turista, pois desejava ter a experiência de um kibutz. Ao entardecer, tomei um pequeno caminhão que levaria nosso grupo para a região da Galiléia, no sudoeste de Nazaré, onde este estava instalado. Ao entrar no caminhão, respirei o ar da noite que chegava e senti o cheiro da terra. Uma idéia estonteante tomou conta de mim: os pés de Deus haviam pisado naquela terra! Senti-me tomada por uma profunda e estranha emoção. Precisei me segurar para não ceder ao impulso de saltar para beijar aquele chão. Não me recordo o nome do kibutz, mas me lembro da agradável convivência da vida comunitária, da alegria e fartura das saladas frescas que preparávamos nas grandes mesas do refeitório coletivo. Gostava de trabalhar no campo, colhendo algodão ou girassóis. Nos intervalos, costumávamos sentar num gramado verde, perto da plantação para descansar, e meus olhos repousavam numa montanha, que dominava serenamente o planalto da Galiléia.
A montanha atraía meu olhar, e seu nome ficou registrado na minha memória: Tabor. Nada sabia, contudo, naquela época, sobre os acontecimentos bíblicos nela ocorridos. Certa noite, eu tive um sonho que muito me impressionou. Nele, via-me sentada no gramado, contemplando o monte Tabor, quando ouvi um som que parecia sair do azul do céu. Quando o som se tornou mais nítido, identifiquei-o como a voz de Deus me chamando do alto da montanha. Ao começar a escalada, meus pés tocaram a terra e esta me pareceu como sendo calcária e cheia de pedras, mas logo percebi que dela brotava uma luz intensa que fazia com que seus pedregulhos se transformassem em diamantes. A terra era iluminada por uma luz radiosa que jorrava de dentro dela. A montanha transfigurou-se e uma profunda nostalgia se apoderou do meu coração diante da beleza e da força daquela rocha luminosa. Ouvi, então, a voz de Deus, que parecia me dizer: Não precisa ficar triste, esta terra é também sua. Você pode pegá-la. Enchi dois baldes de terra e pedras brilhantes. Carregando um balde em cada mão, continuei a subida imersa na luminosidade da montanha. Meu coração estava repleto de alegria com minha dupla porção. Sentia ter conseguido uma herança mais preciosa do que o ouro puro.
Voltei para minha vida em Paris muito impressionada com o sonho. Um amigo judeu me levou a uma professora de cultura judaica, que era cabalista, para que ela o interpretasse. Esta me disse ter eu recebido parte da herança dada por Deus a Israel, assim como a possibilidade de uma ascensão espiritual para Deus. Meus amigos mais próximos eram judeus, e eu os sentia como sendo minha família. Freqüentemente me diziam que eu parecia judia. Desse modo, a interpretação correspondia a um sentimento real de amor pelo povo judeu. Fui convidada pela professora a fazer cursos e a realizar práticas religiosas judaicas, no Centro Edmond Fleg
de Paris. Logo me integrei muito bem na comunidade religiosa que freqüentava, e sentia especial alegria em participar do
shabat, o dia consagrado pelos judeus a Deus. No último momento, contudo, recuei diante da possibilidade de uma conversão ao judaísmo.
Algo em meu coração me dizia que, apesar do meu grande amor por aquele povo e aquela tradição, esse não era o chamado de Deus transmitido em meu sonho. Anos mais tarde, ao retornar ao cristianismo, na década de noventa, quando já nem me lembrava mais daquele sonho, fui a uma reunião do Círculo Bíblico de minha paróquia, no Rio de Janeiro. O grupo preparava o trecho do próximo domingo
, no qual se celebraria a Festa da Transfiguração do Senhor. O texto narrava que, após o primeiro anúncio da paixão, Jesus tomou Pedro, Tiago e João, e os levou a uma montanha, na qual se transfigurou diante deles.
Quando estávamos lendo este texto, fiquei atônita ao lembrar o sonho da montanha. Meu olhar foi atraído por uma nota de roda-pé, que me esclareceu o chamado do sonho. A nota explicava que o Monte Tabor era, segundo a interpretação tradicional, a montanha a que se referia o relato da transfiguração de Jesus. Tive assim um sinal claro e significativo que apareceu logo em meu primeiro contato com a leitura da Palavra de Deus, na Bíblia. Tomei assim consciência de ter sido chamada a participar da contemplação da divindade de Cristo, revelada aos mais íntimos discípulos, no Tabor. Ele era a montanha transfigurada, a rocha brilhante mais preciosa que o ouro puro. Apesar desse vislumbre espiritual, foram necessários anos para entender o valor dessa rocha brilhante e nela estabelecer os alicerces de minha casa. Parece-me incrível que apesar dessas experiências tão fortes, eu tenha demorado tanto para mudar o rumo da minha caminhada humana até me instalar de modo mais estável sobre essa rocha.
Essa mudança de rumo ocorreu através de uma passagem pela Índia e pela espiritualidade oriental, tendo me levado de volta ao diálogo com Deus e, posteriormente, ao catolicismo e ao diálogo inter-religioso monástico. Após a experiência na Terra Santa e o contato com a espiritualidade judaica, comecei a perceber cada vez mais nitidamente o vazio da vida mundana e acadêmica e a aspirar a algo diferente que não sabia muito bem o que poderia ser. Já trabalhava, então, como psicóloga clínica e participava com sucesso das transformações introduzidas pelas novas terapias psicossomáticas, nas quais se manifestavam fortes influências orientais. Em 1978, recebi um convite para acompanhar um grupo de universitários à Índia. Numa estranha coincidência, meu bilhete foi marcado para três dias antes da chegada do grupo a Bombaim, o que me deu a possibilidade de deixar as luxuosas dependências do hotel Taj Mahal para ir visitar um renomado mestre de meditação, num pobre vilarejo próximo dessa cidade.
O impacto de entrar em contato com um santo vivo da tradição indiana e poder perceber o estado espiritual no qual estava instalado foi fulminante! A serenidade, a força espiritual, o amor, a alegria que dele jorravam e a liberdade, espontaneidade e leveza de suas expressões e movimentos não tinham paralelo com nada que tivesse visto anteriormente, pondo em evidência o estado de contração e secura mental da vida intelectual na qual eu vivera mergulhada até então. O desejo de atingir esse estado mental reorientou radicalmente o meu interesse para uma prática intensa da meditação. Dediquei-me com empenho ao aprofundamento do estudo da filosofia indiana para poder melhor entender os ensinamentos que esse mestre transmitia sobre a expansão da consciência e a realização do ser. Esse ensinamento me pareceu muito valioso, e, entendi por que os monges que cercavam meu mestre de meditação haviam largado tudo para seguirem suas pegadas rumo ao divino, sentindo-me cada vez mais atraída pela opção dos monges.
3. MÍSTICA ORIENTAL E RETORNO AO CATOLICISMO
Em 1980, voltei ao Brasil, trazendo comigo o ensino desse tipo de meditação e, durante quatorze anos, passei longos períodos no
ashram ou comunidade espiritual reunida em torno desse mestre, aprofundando meu estudo e prática do caminho por ele proposto para desenvolvimento espiritual. Os mestres da ioga ensinam um caminho espiritual de interiorização e expansão da consciência que tem como base um processo corporal e mental de integração e ascensão da energia humana. Nesse processo se busca orientar e direcionar o impulso sexual para a vida espiritual através de uma prática da continência sexual conhecida como
brahmacharya. Através da prática do
brahmacharya, a ioga aborda, portanto, a dimensão psíquica e espiritual da energia, procurando a reunificação das polaridades humanas (o pólo positivo e ativo e o pólo negativo ou passivo) para a elevação do ser humano em direção ao divino
. O ensino dessa prática de continência é transmitido através de símbolos da cultura indiana como um processo de integração da componente feminina e da componente masculina da psique, que são representadas pelo deus Shiva e pela deusa Shakti. Ao contrário do Ocidente, a cultura indiana valoriza, então, o celibato monástico e a virgindade antes do casamento. No ocidente, a questão foi pouco aprofundada e ficou praticamente desconhecida fora do contexto religioso.
Comecei a praticar a meditação a fundo, sem me preocupar muito com as questões morais e sexuais, obtendo rapidamente resultados surpreendentes, porém através de minha própria experiência fui apreendendo o valor do celibato. Trabalhando e morando, em Paris, desde 1966, eu vivia no meio intelectual francês, pondo em prática as idéias em voga nesse meio sobre o “amor livre”, sobre a liberdade da mulher e sobre a importância da realização dos impulsos e prazeres. Fiquei, pois, impressionada ao perceber como os hindus direcionavam a sexualidade para a vida matrimonial e para a vida espiritual
. Durante minha permanência em minha comunidade espiritual (o
ashram perto de Bombaim), eu seguia simplesmente a disciplina e a ascese recomendadas. Conseguia, assim, um estado de paz, alegria, satisfação comigo mesmo e de grande força e clareza mentais. Inicialmente, ao voltar a Paris, eu continuava levando minha vida anterior, até que percebi o quanto isso desgastava e enfraquecia toda a energia espiritual acumulada nos longos períodos de prática intensa.
Desse modo, tornou-se claro para mim por que os monges fazem os votos de brahmacharya e praticam o celibato. Com base na prática da meditação, no estudo da psicologia ensinada pelos mestres indianos e em minha experiência pessoal sobre a sexualidade compreendi a importância do celibato e fiz interiormente os meus votos passando a me considerar, desde o final da década de setenta, como uma monja vivendo no mundo. Tendo tomado minha opção de união com Deus, minha decisão da prática do celibato tinha como objetivo seguir o caminho proposto pela ioga de voltar o impulso humano para dentro e para o alto (e não para baixo e para fora, em direção ao mundo externo). De acordo com a concepção do brahmacharya, a vida espiritual una e consagrada corresponde a uma proposta de elevação espiritual do impulso humano na sua totalidade. Ela permite de distinguir a escolha do celibato da recusa da sexualidade ou da recusa de um companheiro do sexo oposto. No caso da vida una, abre-se apenas mão de uma união externa e complementar humana para buscar-se uma união interior e espiritual com Deus.
Minha escolha da vida una consagrada foi uma opção interior de união com Deus, não correspondendo a nenhuma adesão ao hinduísmo. Minha opção pelo caminho da meditação e da vida monástica no mundo não foi acompanhada de uma aceitação das concepções religiosas hindus sobre a reencarnação, a adoração das diferentes divindades, a divisão em castas, a relação com os estrangeiros, etc. Pude assim continuar, mesmo depois de meu retorno ao catolicismo e até hoje, a prática da meditação e do celibato visando apenas o movimento de interiorização da consciência e a unificação do impulso como forma de elevar o meu espírito e preparar o meu ser para as manifestações mais sutis do plano espiritual e do diálogo com Deus. Encaro essas práticas como uma postura de abertura para Deus e para a escuta do que Ele propõe para mim e para minha vida, despojando-me das construções do ego de modo a tornar-me aberta e livre como uma criança que não foi ainda moldada pela vida do mundo. Não atribuo, portanto, nenhum mérito a essas práticas em si, nem procuro através delas atingir algum estado mais avançado de desenvolvimento espiritual apenas com essas práticas, pois acredito que esse desenvolvimento só possa ocorrer em parceria com a graça de Deus, numa união amorosa que não está diretamente relacionada ao estado da mente ou à prática do celibato. Essas duas práticas apenas preparam o terreno
Foi na comunidade espiritual de meu mestre de ioga, na Índia, que voltei a ouvir falar de Jesus Cristo e dos santos católicos. A comunidade comemora as principais festas das tradições religiosas dos discípulos ocidentais, entre elas o Natal, e lendo a belíssima revista dessa tradição da ioga passei a conhecer o caminho da mística e da contemplação dos santos católicos que o haviam percorrido, como S. João da Cruz e Santa Tereza d’ Ávila. Os textos da revista se referiam a eles e a Jesus com grande reverência, mas a Ele se referiam como um mestre divino igual aos outros mestres também considerados como divinos dentro da ioga. A reverência pelos santos que trilharam o caminho do Amor de Deus em outras tradições religiosas me parecia comovente, porém, tendo sido educada na tradição católica, eu estranhava a maneira como Jesus era apresentado na versão hindu adotada pelo mestre de ioga dessa tradição e aceita por sua comunidade. O enfoque hinduísta do Cristo era diverso do apresentado pelos Evangelhos e pela tradição cristã, de modo que eles pareciam falar de outra pessoa distinta da que eu conhecera, no contexto católico. Voltei, então, a ler os Evangelhos, procurando melhor esclarecer essa questão da divindade. Quanto mais eu relia os Evangelhos e meditava sobre as palavras de Jesus sobre Ele mesmo, mais difícil me parecia ignorar as diferenças
. Cheguei a um ponto em que minha certeza que Jesus era Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, tornou impossível aceitar a interpretação que colocava outros mestres espirituais no mesmo nível.
Foi nesse momento, que uma experiência espiritual em meditação desencadeou meu movimento de retorno ao catolicismo. Era um Natal do início da década de noventa, e eu estava sentada em meditação, no pátio desse ashram indiano, na área rural de Bombaim, com os demais membros da comunidade reunidos em torno da nossa mestra de meditação. Sentia-me coberta pelo céu estrelado, mergulhada no profundo silêncio da meditação conjunta e envolta pelo ar perfumado daquela agradável noite tropical de dezembro, quando senti passar por mim uma presença inigualável. Inicialmente, imaginei que essa presença fosse a da mestra de ioga que estivesse passando entre nós, e abri os olhos para ver, porém ela continuava sentada em sua cadeira.
Voltei a fechar os olhos e, entrando em meditação, senti novamente a presença e procurei melhor fixar minha atenção interior nela. Consegui perceber que essa presença sutil era masculina, porém sua energia era distinta daquela que sentia na presença do mestre anterior já falecido. Era uma presença masculina num corpo sutil de forma esguia, diáfana e suave da qual emanava uma força poderosíssima. Todo resto em volta havia desaparecido. Concentrando toda minha atenção nessa figura delineada na tala da minha consciência completamente interiorizada, pude, então, captar uma doçura amorosa indescritível e inebriante que tocou profundamente meu coração, de onde surgiu a certeza: Era Jesus! Foi como se ele tivesse vindo pessoalmente me chamar de volta para a comunidade de seus discípulos. Escrevi à minha mestra dizendo que tudo que aprendera em seu ensinamento era bom e muito tinha me ajudado espiritualmente, mas que eu amava Jesus, e tinha decidido segui-lo. Não estava negando o que recebera nem me cabia criticar o hinduísmo ou opô-lo ao cristianismo. Meu objetivo era apenas aprofundar essa relação com Jesus, mergulhando totalmente na pureza das águas que jorravam das fontes cristãs desde sua vinda ao nosso mundo. Tinha consciência que a caminhada pela espiritualidade indiana me propiciara um retorno mais maduro ao cristianismo, e reconhecia o imenso valor dos ensinamentos da meditação transmitidos por meus mestres da ioga, mas queria tomar o rumo do caminho cristão, evitando misturar ensinamentos distintos.
Tendo retornado ao catolicismo, em 1992, após uma longa caminhada pela espiritualidade oriental e uma intensa prática da meditação, estranhei inicialmente a dimensão mais externa e “social” das práticas cristãs. Verifiquei haver pouca informação dos católicos sobre o caminho monástico cristão e sobre a contemplação cristã. Separadas da vida contemplativa, as práticas litúrgicas ou caritativas católicas me pareciam descambar para o ativismo, ficando à mercê da influência da crescente agitação do modo de vida urbano. Fiquei triste ao perceber a frequente incompreensão a respeito da necessidade do recolhimento e a ausência de interiorização e contato consigo mesmo. Tal situação vem se agravando ainda mais face ao desenvolvimento dos meios de comunicação, que criam sempre novas e múltiplas necessidades de consumo. Entrando em contato com os monges católicos e estudando a contemplação cristã, cheguei à conclusão que essas características não são próprias da vida cristã, mas decorrem da marginalização da vida mística e contemplativa, no ocidente, e das condições sociais nas quais se desenvolve o cristianismo, na atualidade.
O fato de ter percorrido o caminho espiritual da ioga, levou-me ao estudo comparativo das práticas de meditação e das praticas contemplativas cristãs. Pude assim verificar que, tanto o caminho espiritual da ioga como a vida mística cristã exigem uma interiorização da consciência, que se desliga (inicialmente, ao menos durante as práticas espirituais) da atividade externa dos sentidos e do modo de funcionamento do mundo material para voltar-se para o mundo espiritual. A opção pela vida espiritual com Deus exige um recolhimento dos sentidos e da percepção do mundo externo, como condição para uma abertura para Deus e outro tipo de escuta de si mesmo e dos outros. A idéia da abertura interior para o alto e para Deus existe, portanto, no cristianismo. Na concepção cristã, o ser humano não está separado de Deus e sim intimamente a Ele associado, sendo Ele considerado como o fundamento mesmo do nosso ser. Meu contato e estudo da contemplação cristã levaram-me a valorizar a concepção cristã do ser humano como pessoa capaz de transcendência e de abertura para o mistério de Deus como o grande Outro. Essa concepção me permitiu ir além da tendência espiritualista da ioga e perceber o risco de acentuar o retorno da consciência sobre si, fechando a pessoa em sua subjetividade.
Minha passagem pelo caminho espiritual dos mestres e monges hindus me ajudou, igualmente, a perceber a importância da clausura, mesmo achando necessário readaptá-la ao contexto da vida moderna. Com base na experiência indiana, pude valorizar a necessidade de ruptura com o mundo externo para o aprofundamento da vida espiritual, quer na forma parcial de retiros quer na forma mais radical da clausura dos mosteiros. Minha adesão à fé cristã permitiu-me manifestar o desejo de ser monja e de entrar para um mosteiro beneditino. Fiz minha experiência em 1998, no Mosteiro Nossa Senhora da Paz, em Itapecerica da Serra (São Paulo), e já havia decidido nele ingressar, quando, em janeiro de 1999, meu pai faleceu. O dia primeiro de janeiro, festa de N. Senhora Rainha da Paz ficou, contudo, para mim como o dia de minha consagração à Deus como monja beneditina e eu o celebro todos os anos. Colocando em primeiro plano a caridade, não pude abandonar minha mãe sozinha e optei por não fazer minha entrada no mosteiro. A passagem pela ioga me ajudou também, nesse momento, a entender que o afastamento do mundo para a comunicação com Deus não se faz pelo fechamento dentro dos muros dos mosteiros.
Essa comunicação exige um abandono de nossas construções e agitações mentais, de nossas identificações sociais, de nossas vontades e de outros apegos e propensões naturais, que possam ser um obstáculo a um encontro mais profundo com Deus. Essa compreensão me levou a aceitar o que estava acontecendo como uma expressão da vontade de Deus para minha vida, e reorientar meu impulso para a realização dessa vontade. Com isso, observei uma ampliação do espaço interior de contato com Deus, uma maior afinidade instintiva com as coisas de Deus, permitindo-me discernir o que é de Deus sem me afastar do mundo ao meu redor. Percebi, então, claramente o erro de se imaginar esse contato com Deus, dentro ou fora dos mosteiros, como uma forma de afastamento dos outros seres humanos e passei a perceber mais claramente o diálogo com Deus num espaço interior onde predomina o amor e há uma maior doação e entrega de si mesmo ao outros, podendo ocorrer tanto nos momentos de oração como no desenrolar da vida cotidiana. Para isso, no entanto, é fundamental estar conectada à vida espiritual da Igreja, de seus sacramentos e ensinamentos, pois é através da comunidade dos apóstolos e de seus sucessores, dos santos e discípulos de Cristo que a seiva de sua árvore passa para os ramos.
4. CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO
Em função de minha caminhada por diferentes caminhos religiosos e meu interesse pelos santos e práticas das correntes contemplativas hindus e católicas surgiu naturalmente em meu coração um interesse particular pelo diálogo inter-religioso. Novos fatos iriam ser decisivos para minha caminhada nessa direção. Minha mãe manifestou a vontade de ter a posse de todos os bens materiais deixados por meu pai, dos quais deveria receber apenas a metade como esposa e eu a outra metade como única herdeira. Armando-se contra mim, ela recusava também qualquer ajuda, querendo viver uma vida independente que nunca tivera enquanto fora casada. Resolvi aceitar a vontade dela e tomar um novo rumo em minha vida. Surgiu, então, em 2000, a possibilidade de fazer um pós-doutorado em filosofia, no Instituto Católico de Paris, sobre o diálogo inter-religioso e a oportunidade de ir morar no Priorado das beneditinas de Vanves. Foi lá que, sentada no refeitório das irmãs, na mesa da Priora, Madre Bénigne, eu ouvi pela primeira vez uma leitura sobre o diálogo inter-religioso monástico, feita pela nossa saudosa Ir. Marie Bénédicte. De origem vietnamita e formada dentro da cultura budista, ela era profundamente engajada no diálogo monástico e foi a ela que manifestei, imediatamente após a escuta dessa leitura, o meu desejo de participar desse diálogo.
Ela me convidou, então, a participar da reunião da comissão francesa responsável pela organização de um próximo evento sobre o diálogo inter-religioso monástico, na França. É impossível descrever a minha alegria por me encontrar no meio de monges de diferentes tradições religiosas e assistir a discussão através da qual procuravam delinear a apresentação do tema da presença proposto para esse evento. Cada um dos monges apresentava com grande clareza uma maneira distinta de tratar a questão, em função do enfoque de sua tradição monástica sobre a abordagem da presença. Foi interessantíssimo escutar essa polêmica, não apenas pela diversidade dos conteúdos, mas, sobretudo, pelo tom da discussão. Percebi que me encontrava rodeada de seres humanos muito especiais, que não procuravam nem dominar o outro nem impor-lhe suas idéias. Confrontavam claramente suas diferenças sobre a questão com a maior firmeza sobre a abordagem de suas tradições, porém no maior respeito da visão das demais tradições monásticas. A unidade amorosa que conseguiam transmitir no respeito das diferenças era extraordinária! Nunca antes nem depois, presenciei um melhor exemplo de reconhecimento mútuo. O meu deleite chegou ao auge quando fomos lavar juntos os pratos da nossa refeição em comum, e pude perceber o carinho com que uns procuravam servir os outros.
De volta ao Brasil, em 2002, inscrevi-me num doutorado em psicologia, de modo a poder assim me reintegrar à vida acadêmica brasileira. Minha participação na comissão européia do D.I.M., desde 2000, meu contato pessoal com os monges e o acesso aos boletins da Comissão, contendo relatos de monges da tradição de Shankara e da tradição beneditina, viabilizaram a escolha do movimento de diálogo inter-religioso monástico como campo preferencial de estudo. Decidi orientar minha pesquisa de tese para esse tema. Realizei um estudo da história do monaquismo e da organização da vida monástica, em diferentes religiões, observando uma proximidade e paralelismo no surgimento das ordens monásticas hindus e cristãs
. Meu projeto foi aceito, tirei o primeiro lugar entre os candidatos ao doutorado e recomecei meus estudos, em 2003, no departamento de psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Como traduzia, nessa época, os boletins do DIM para o português, tive acesso em primeira mão à pesquisa que realizaram com monges católicos do mundo inteiro a respeito de suas experiências de diálogo
.
Como minha pesquisa era no campo da psicologia focalizei, na análise que fiz dos dez anos do boletim do DIM e desses depoimentos, a dinâmica de identidade - alteridade da consciência, no contexto do diálogo inter-religioso monástico. Introduzi uma questão polêmica ao mostrar que tanto a experiência monástica hindu como a cristã propõem-se a ultrapassar a dimensão social do eu, sem considerar que o ser se reduza a essa dimensão social. Pus em relevo a contribuição dos monges para a formação espiritual dos ocidentais, tendo em vista o ativismo, exteriorização e carência de interiorização de sua vida espiritual. Pude, assim, ressaltar que, no ocidente, predomina uma separação entre materialismo e espiritualismo, entre ciência e religião, entre subjetivo e objetivo, que vem permitindo um estudo objetivo dos fenômenos através da observação, mas vem também separando e dividindo o conhecimento em diferentes aspectos e áreas de estudo, perdendo de vista a perspectiva mais global e interior dos grandes sábios e pensadores. Ao romper com a dimensão metafísica do espírito, a filosofia e a psicologia ocidentais se restringiram, deixando de lado a ligação entre a consciência individual e uma consciência mais ampla. Desse modo, perderam o contato com as raízes mais profundas, integradas e simbólicas da consciência, desenvolvendo predominantemente a dimensão racional, objetiva e social.
Nessa tese, destaquei o fato que, embora sendo ainda recente, o diálogo monástico indica uma tendência inovadora na relação entre as religiões ocidentais e orientais que é fruto não apenas do esforço pessoal de alguns pioneiros, mas também das transformações religiosas e sociais que se aceleraram na atual etapa de mundialização. Após apresentar os fundamentos do monaquismo, tendo salientando as diferenças entre suas principais tendências e a referência a uma base comum entre os diferentes tipos de monaquismo, situei o desenvolvimento do diálogo entre monges na perspectiva da história monástica cristã, no atual contexto de pluralismo religioso e de elaboração católica sobre o tema. Salientei, então, que a importância deste tipo de diálogo para o campo de estudo da religião reside em sua ênfase na experiência, em sua associação entre diálogo e contemplação (ou meditação), e no compartilhamento de práticas monásticas por membros de diferentes tradições religiosas. Ao mesmo tempo, como as experiências relatadas pelos monges estavam enraizadas em uma vida religiosa tanto pessoal como comunitária e foram orientadas para o testemunho, elas permitiram um enfoque das representações históricas do diálogo, o que me permitiu relacionar essas representações às práticas religiosas, às experiências espirituais, e às histórias de vida dos monges e comunidades monásticas.
Adotando a perspectiva desse tipo de diálogo, foi possível distinguir a dinâmica de reconhecimento mútuo nele predominante da dinâmica de auto-afirmação e recusa do outro, predominante nas experiências de negação da diferença, de guerra e eliminação da alteridade. Mostrei, então, como a predominância da dinâmica de reconhecimento mútuo foi favorecida pela ruptura social da vida monástica, pelas práticas contemplativas e pelo profundo processo de reformulação da identidade-alteridade pela qual passam os monges em sua caminhada para o Absoluto. Atualmente, o reconhecimento da identidade cristã e da alteridade religiosa está sendo considerado por estes monges como central para seu diálogo inter-religioso e está lhes permitindo rever sua relação com a própria identidade, ultrapassando, ao mesmo tempo, as representações históricas negativas sobre as outras religiões e promovendo a abertura para outros seres, culturas e religiões. A análise de todas estas mudanças foi situada no contexto da Babel contemporânea, pondo em relevo a contribuição monástica para uma unidade na diversidade de linguagens e seres, permitindo distinguir a visão de pluralidade no reconhecimento da identidade-alteridade de outras perspectivas de unidade e pluralidade baseadas apenas na identidade.
5. DIÁLOGO E CONTEMPLAÇÃO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
Os aspectos que mais me estimulam a prosseguir no caminho do diálogo monástico são: a necessidade de outro tipo de espiritualidade para o mundo atual, a consciência do papel dos monges na Babel contemporânea e a exigência crescente de tomar distância e rever a nossa ”maneira ocidental” de ser e pensar, reformulando as próprias características atuais do “espírito ocidental”, a espiritualidade cristã e a relação do cristianismo com a cultura ocidental e oriental. Apesar dos progressos obtidos pelo processo de delimitação do espírito, predominante no Ocidente, o esforço racional levou a uma drástica ruptura com o imaginário, provocando o retorno atual a uma espiritualidade de tipo imaginário, empobrecida pelo predomínio anterior e exclusivo da racionalidade. A redução do espírito ocidental ao estreito círculo da consciência reflexiva assim como a tentativa de separar o objetivo do subjetivo apresentam várias vantagens para o desenvolvimento da ciência e para a superação do subjetivismo religioso. A grande desvantagem decorre, porém, da redução do psiquismo ocidental à dimensão mais racional, seguida de uma exteriorização e ativismo espiritual, que acabaram impregnando a vida religiosa cristã.
O diálogo inter-religioso monástico pode vir a contribuir para o reequilibro das tendências opostas das religiões, no Oriente e no Ocidente (a tendência para o interior e a tendência para o exterior), estimulando uma integração dessas duas inclinações da consciência, tendo em vista o caminho próprio proposto por cada uma das religiões. Para o ocidental, por exemplo, seria importante compensar sua extroversão pela revalorização das tendências e buscas espirituais contemplativas, permitindo um maior desenvolvimento da dimensão introvertida, enriquecida, eventualmente, com as pesquisas e descobertas orientais compatíveis com o projeto cristão. Daí, a importância de valorizar e divulgar o inestimável acervo do conhecimento contemplativo guardado nos mosteiros católicos. Para isso é, também, importante analisar em profundidade os enfoques orientais sobre o cristianismo, integrando suas contribuições e procurando entender as diferenças culturais entre as religiões.
Uma contribuição importante do hinduísmo para o diálogo inter-religioso atual é sua base no
dharma ou lei natural e seus ideais éticos, baseados no celibato e no ascetismo, sendo o estado do
samnyasa ou renunciante considerado como o coroamento e o ideal da vida humana
. A ética hindu implica a prática de elevadas virtudes, que integradas a uma elevada metafísica nos ensinam uma concepção de evolução espiritual e de domínio do espírito sobre a matéria. Nela, o verdadeiro progresso é medido pela evolução do espírito em direção a Deus, o que faz os hindus considerarem o ocidente como decadente, tendo invertido os valores éticos fundamentais. Essa inversão teria ocorrido ao colocarem os ocidentais os bens materiais acima dos espirituais e ao terem se entregue a uma decadência moral do próprio
dharma ou lei natural. Desse modo, o ideal hindu do herói espiritual, que através da disciplina e da prática das virtudes desinteressadas alcança um estado interior de grande liberdade e amor permite não apenas uma crítica da condição ocidental atual e de sua pesquisa sobre a psique humana, mas pode também contribuir, através do diálogo inter-religioso monástico, para um retorno do catolicismo às suas raízes místicas e contemplativas, cuja tradição vem sendo preservada em nossos mosteiros.
Em decorrência do meu próprio percurso e de minha inserção no mundo, preocupei-me em refletir sobre o diálogo e a contemplação, no contexto do mundo atual. Colocando-me na perspectiva do que aprendi no meu percurso espiritual por diferentes religiões, parece-me fundamental que a contribuição espiritual da ioga e da tradição hindu possa vir a ser integrada ao catolicismo, assim como o foi a contribuição do pensamento grego. Para isso, seria necessário fazer uma aculturação de diferentes aspectos da religião hindu, em particular de suas narrações mitológicas sobre as diferentes encarnações divinas, compreendendo que, embora elas entrem em contradição com a fé cristã sobre a divindade de Cristo, elas constituem uma maneira acessível e rica de transmitir ao povo hindu conhecimentos metafísicos e uma reflexão sobre a ética e as virtudes, numa linguagem simbólica capaz de exprimir realidades transcendentes, conduzindo esse povo à fé em uma única e suprema divindade. Sem dúvida, a pesquisa da ioga, associada ao enorme esforço de abstração da filosofia indiana, produziu uma elaborada representação do Deus Uno e do Mestre Divino, descrevendo de forma fascinante a busca humana de Deus e as batalhas interiores da alma humana para encontrá-lo.
Os grandes heróis dessa odisséia interior dominaram a própria mente, aprimorando as virtudes naturais e desenvolvendo potencialidades humanas desconhecidas e consideradas por muitos como paranormais. Ao atingirem um estado de plenitude do amor divino e de serviço desinteressado à humanidade, eles são considerados como santos da tradição hindu. Parece-me importante reconhecer o valor dessa santidade atingida na intimidade com Deus, compreendendo, no entanto, existir no caminho da tradição hindu um processo diverso da santificação daquele que ocorre através da filiação cristã. Subjacente à busca interior da ioga está a concepção da identidade do Âtman com Deus, cuja realização, segundo a ioga, consiste em se esvaziar do ego pessoal e se tornar uno com o Deus que vibra no coração de cada ser humano. Os mestres espirituais hindus se propõem a conduzir seus discípulos à união com o Ser Divino por uma alquimia interior que transforma a natureza humana em divina, na medida em que esse processo de autoconhecimento e identificação com o Ser Divino se consolida.
Minha experiência me mostrou que para participarem do diálogo inter-religioso, os católicos precisam estar firmemente enraizados em sua fé na Pessoa divina de Cristo e no caráter único, inédito e sem precedentes da proclamação de Jesus sobre o Reino de Deus como uma irrupção no presente de um estado transfigurado do mundo. A experiência da relação com Cristo nos concede a graça de ter acesso a um processo de divinização que ocorre naturalmente e pode ser vivenciado até pelas crianças, como mostro neste meu testemunho, pois ele ocorre por uma iniciativa de Deus. Compartilhando a fé católica, compreendi que esse processo ocorre a partir do envio de uma mensagem de amor de Deus à humanidade através de seu Filho, que abre seus braços e estende sua mão a todos os seres humanos. Após meu regresso ao catolicismo, tomei consciência de que com a vinda de Jesus entre os homens, o Reino de Deus já está inserido na história humana, e pude vislumbrar o horizonte de uma renovação espiritual e corporal dos seres humanos, percebendo que ela está em curso na vida daqueles que estabeleceram essa nova relação com Deus através de Cristo, mesmo que a transformação da vida do mundo não tenha ainda sido realizada segundo do projeto da nova criação por Deus. Quem sabe Ele não está esperando que participemos nesse processo, melhorando o nível da relação entre os seres humanos? Nesse sentido, pode-se dizer que o percurso que nos conduz ao reconhecimento mútuo e amoroso através do diálogo corresponde ao apelo do projeto de Deus.
A divulgação sem precedentes do símbolo do monge parece ir nessa direção como venho procurando assinalar em vários textos sobre papel dos monges na Babel Contemporânea
. Antes mesmo de entrar em contato com os monges ou de conhecer meu mestre de meditação, quando meu processo de psicoterapia atingiu as camadas mais profundas da consciência e atravessou a área das sombras, meus sonhos foram povoados por estas figuras. Personagens de monges e sábios aparecem também em vários contos e lendas, desempenhando um papel central na formação dos heróis e em suas batalhas e vitórias espirituais. Este símbolo vem sendo mantido vivo na memória coletiva pela transmissão oral da experiência de diferentes tradições, em particular monásticas, que são depositárias do manancial da vivência humana a este respeito. Recentemente, esses personagens vêm surgindo com grande força também em diferentes tipos de filmes e livros. Emergindo do fundo da consciência com novas ou antigas roupagens, o símbolo do monge ou do sábio vem assim ganhando os meios de comunicação e o grande público.
Considero que esse novo impulso na difusão do símbolo do monge manifesta uma renovação não apenas do monaquismo, mas também da busca dos valores espirituais e do estado de paz e harmonia, que os monges relacionam com a vida espiritual e a intimidade com Deus e que o profeta Isaias anunciou como projeto de Deus para a humanidade.
Esse renascimento pode surpreender, no Ocidente, na medida em que brota das cinzas da destruição e decadência de muitas instituições monásticas e religiosas cristãs, no período histórico no qual ocorreu o predomínio do materialismo e do secularismo. Quando se acreditava, porém, no Ocidente, que a religião desapareceria com o progresso, e a vida monástica estava ultrapassada, não tendo mais sentido para a modernidade ocidental, eis que a necessidade espiritual e religiosa retorna com mais vigor e ressurge o interesse pela vida monástica, na chamada pós-modernidade globalizada. Parece-me, aliás, que o atual diálogo inter-religioso monástico está reativando e renovando o manancial da longa e variada tradição monástica das várias religiões. Daí a importância de se tentar compreender e situar as condições de vida dos monges e o diálogo inter-religioso monástico, no contexto histórico atual e em relação com o processo de mundialização. É neste novo contexto que o símbolo do monge e o papel deste se destacam, em particular junto aos jovens, como se pode verificar ao estudar a experiência da comunidade de Taizé, que é um exemplo desse papel dos monges na Torre de Babel da pós-modernidade.
Refletindo a esse respeito compreendi que o papel fundamental da comunidade monástica, no contexto dessa enorme Babel do mundo globalizado, é o de abrir o horizonte de um mundo alternativo possível e de uma unidade na diversidade de línguas. A comunidade monástica manifesta, na forma de um modo de vida diverso da ordem do mundo, o horizonte escatológico cristão da ordem do Reino de Deus. As comunidades monásticas encarnam a utopia, que é partilhada por muitos jovens, de um mundo harmonioso e sem conflito, onde cada um pode ser levado – como no canto a várias vozes entoado pelos monges - a representar sua própria parte, participando da unidade do todo. O diálogo inter - religioso monástico me parece corresponder às necessidades de nossa época, nos quais as pessoas estão cada vez mais dispersas e submersas numa multiplicação de línguas e sons. Assim sendo, considero que o testemunho dos monges, em particular dos participantes do diálogo inter-religioso monástico, pode contribuir para as transformações atuais do mundo, na medida em que sua caminhada espiritual ajuda a lançar luzes sobre novas maneiras de ser e de se relacionar, revelando uma visão espiritual de unidade e alteridade na pluralidade de vozes, em estreita relação com a realização do Reino de Deus.
Qualquer que seja o modo de organização adotado pelo monaquismo, nos diferentes contextos culturais e religiosos, aparece sempre essa forma radical de relação com Deus ligada à proposta de uma transformação humana para além dos parâmetros sociais vigentes, numa espécie de posição de contraponto à ordem do mundo. Os mosteiros apresentam-se como um ambiente favorável para o diálogo com Deus, para um diálogo mais profundo entre os seres humanos de diferentes religiões e para uma convivência amorosa e pacífica entre os seres humanos, desempenhando um papel fundamental no contexto atual de predominância e generalização das relações mercantis. E também possível, como mostro em meu testemunho, realizar uma caminhada nessa direção vivendo no mundo, sobretudo quando se mantém a ligação com uma comunidade monástica. De qualquer forma, os monges acabam, portanto, tendo uma função fundamental em nossa época: a de apontar para a transcendência espiritual e a ascensão para Deus, tendo em vista não a construção de uma torre humana, mas a resposta a um projeto de Deus que se manifesta na história e na vida pessoal daqueles que procuram escutar sua Voz.
Olga Sodré trabalha atualmente como psicóloga clínica e psicóloga social (CRP - 5/6371), é doutora em filosofia (Paris - Sorbonne), com tese sobre a filosofia indiana, e doutora em psicologia clínica, pela PUC-Rio, com tese sobre o diálogo inter-religioso monástico. Tem um pós-doutorado em filosofia (Instituto Católico de Paris), um pós-doutorado, no Instituto de Medicina Social da UERJ, e integra o Grupo de Trabalho Psicologia e Religião da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia).
Parece-me que no primeiro caso, a cultura religiosa cristã está ainda presente na construção mental e na formação cultural mais profunda dessas pessoas, mesmo quando posteriormente elas adotam uma postura materialista, enquanto que, no segundo tipo de materialismo, parece ter havido uma espécie de descristianização. SODRÉ, O. (1985) La Nature humaine et L’Énergie Consciente, Paris - Sorbonne, tese de doutorado em filosofia ; SODRÉ, O. (1989) CIDVILASA, o Jogo da Energia Divina – Teoria e Experiência do Eu: O Ator a Fantasia e seus Personagens, Rio de Janeiro, PUC - Rio, tese de mestrado em psicologia clínica. Através da concepção da fantasia (Maya), critica-se a dimensão ilusória do desejo de objetos, na medida em que este escraviza o impulso humano e leva as pessoas a uma busca incessante e infrutífera de satisfação através da aquisição de objetos. O desejo torna-se, então, uma fonte de sofrimento e aprisionamento do ser humano, que não tem um contato com a fonte divina de onde brota o impulso da vida. É por esta razão que a ioga procura libertar o impulso dos apegos, e ensina a ultrapassar o desejo dos objetos (raga). A liberação espiritual é, então, associada à eliminação dos desejos. Reconhece-se, no entanto, a importância fundamental do desejo de liberação (mummuktaswa), que corresponde a um desejo de aceder ao divino e a um estado de consciência no qual o ser humano torna-se livre e recobra toda sua força e capacidade de criação. Alerta-se, portanto, para o perigo do poder imaginário de Maya em função de sua capacidade de encobrir, enganar e aprisionar a mente. Edmond Flegenheimer, conhecido como Edmond Fleg, (1874 - 1963) foi um intelectual e judeu francês, nascido em uma família assimilada, que sob o impacto do caso Dreyfus se reaproxima do judaísmo, tendo sido um dos fundadores, em 1948, da Amizade Judaico-Cristã da França e autor de um livro sobre Jesus: Jésus raconté par le Juif errant, Paris: Albin Michel, 2000. Em meu pós-doutorado no Instituto de Medicina Social da UERJ (2006-2007) desenvolvi este enfoque, relacionando a questão da linguagem, do símbolo e do mito com o processo histórico-cultural em jogo na sucessão das gerações. Focalizei também a dinâmica de identidade-alteridade dos jovens no desenrolar dos conflitos familiares, ressaltando o estreito entrelaçamento entre o desenvolvimento psicológico e a elaboração dos valores e sentidos fornecidos pela cultura e pela vida social. Delineei um percurso de transformação deste conflito até chegar ao reconhecimento mútuo e à abertura do espaço pessoal, familiar e público. Procurando resgatar a contribuição do mito para a restauração da plenitude do sentido da linguagem, no mundo contemporâneo, aprofundei a linguagem simbólica através da qual ele exprime o conflito entre pais e filhos, com base no mito grego da revolta dos Titãs, realçando o entrelaçamento da história pessoal e social com a linguagem, em particular com o símbolo e o mito. Entre eles o texto feito para a revista do mosteiro de S. Bento, no Rio de Janeiro: Olga Sodré, Monges em Diálogo a Caminho do Absoluto (In
Coletânea – Revista de Filosofia e Teologia da Faculdade de S. Bento do Rio de Janeiro, Ano V - fascículo 9,
setembro de 2006, pp.18-44).
Postado por Carmo Freitas, Ir. Paulo, nov.obl.OSB