25 janeiro, 2011

Parabéns Ir. Gustavo pelo trabalho sobre Verbetes utilizados no Sacconi

Queremos parabenizá-lo pela ação e a grande contribuição, não só cultural, mas de forte cunho do verdadeiro católico apostólico romano. Transcrevemos abaixo a sua carta enviada a Editora Nova Geração, com sugestões sobre alguns verbetes utilizados no Dicionário e, conforme correspondências trocadas, irão efetuar as mudanças sugeridas.
Parabéns!
São Paulo, 12 de janeiro de 2011.

Prezados Senhores Editores:

Ao tempo que os felicito pela primorosa reedição das obras do renomadíssimo professor Luiz Antonio Sacconi, apresento-me: sou Gustavo Vieira de Araújo, graduado em Letras pela Universidade de São Paulo (Língua Portuguesa e Língua Latina).
Em razão do ingente apreço que tenho do abalizado trabalho de Sacconi, seria indesculpável deixar de submeter à apreciação do autor e de Vossas Senhorias algumas sugestões atinentes a certos verbetes do Grande Sacconi – Dicionário da Língua Portuguesa.
Adianto-lhes, todavia, que não se trata de assuntos propriamente gramaticais ou linguísticos, uma vez que para eles reservo momento oportuno, se o tempo e a inteligência mo concederem. Esses, a despeito de minha singela contribuição, serão certamente corrigidos nas edições vindouras.
Especificamente, os temas de que tratarei encontram-se jungidos à Teologia, ciência a que há tempos me dedico em razão das traduções que outrora realizei da Vulgata.
No decorrer das explanações apontarei as referências bibliográficas em que me baseio, sobretudo quando se nos apresente controvertida a tese; todavia, caso esta não seja satisfatoriamente convincente, não deixarei de fornecer-lhes, a tempo, dados que contribuam para a eliminação das dúvidas.
Os verbetes, vejamo-los:

Jesus Cristo

Uma vez que neste verbete está o principal busílis, pu-lo antes dos demais, de forma que o dissecasse cuidadosamente.
Em tempo: As apreciações são imparciais, sem viés religioso, pois que se fundamentam apenas nos registros da Sagrada Escritura e nos textos críticos – igualmente imparciais – a ela atinentes.

O nome Jesus é grego e corresponde ao hebreu Josué (Salvador).”

Correto, em parte. O nome do filho de Maria, antes de ficar à feição da koine do Novo Testamento, vem do hebraico Yehoshú’a (Javé é, ou dá a Salvação). A relação com o nome Josué é corretíssima. V. O Jesus histórico, de Gerd Theissen e Annette Merz; Conhecer Jesus, de José de Anchieta Lima Costa; Vocabulário de pastoral catequética, de Ralfy Mendes de Oliveira; Bíblia de Jerusalém; Tradução ecumênica da Bíblia; Bíblia do peregrino; Minidicionário bíblico, de David Conrado Sabbag.


Os fatos a ele atribuídos foram então questionados, e um pequeno grupo não reconhecia a autenticidade do seu histórico.”

Durante o curso do cristianismo, é fato, vários foram os grupos que fomentaram questionamentos a respeito da autenticidade do Jesus histórico (ou do que se costuma chamar de “Acontecimento-Jesus”), a par de outras tantas questões inerentes ao seu magistério. Ora, nem a própria Sagrada Escritura, em seu aspecto geral, deixou de ser submetida ao abalroamento da crítica.
Eis a pergunta: a passagem acima refere-se à crítica racionalista de Renan (autor de Vie de Jesus), Harnack, Streeter, Hort, Westcott et alii? Caso seja, há razão na afirmação do douto professor, mas não seria dispendioso acrescentar que estes se dobraram à autenticidade histórica dos quatro documentos introdutórios do Novo Testamento, consoante assegura farto material bibliográfico (v. Jesus Cristo é Deus?, de José Antonio de Laburu; Escola da Fé, de Felipe Aquino).


... fatos maravilhosos cercaram o nascimento de Jesus (p. ex.: a anunciação a Maria pelo Espírito Santo).”

Passagem imprecisa. À luz da fé, muitos fatos maravilhosos com efeito ocorreram, porém a anunciação se deu por meio do anjo Gabriel, que informou Maria a respeito da concepção que seria realizada por ação do Espírito Santo, a chamada “encarnação do Verbo” (Lc 1, 26-38).

... a crescente corrupção do governo romano liderado por Herodes.”

Sim, havia improbidade na administração de Herodes Magno (convém especificá-lo), bem como subserviência constrangedora deste ao domínio romano... Ocorre que a expressão “governo romano liderado por” pode ensejar interpretação equivocada do ledor avesso às injunções históricas.
Por experiência própria, afirmo que não é raro encontrar quem, iludido pela conturbada política daquela faixa de terra, imagine ser Herodes um político romano à frente da administração da Palestina. Equívoco comuníssimo.
A propósito, gozando apenas de independência nominal, a Palestina à época não era província romana, até porque estava a Judeia sob o reinado de Herodes, idumeu nomeado e protegido pelo Senado romano. V. Bíblia do peregrino, traduzida e comentada por Luís Alonso Schökel.
A descendência dos Macabeus fora eliminada em favor de uma administração lacaia, convenientemente submissa ao império romano, o que provocava a aversão profunda dos judeus à autoridade alienígena.

... sendo seguido por um pequeno grupo de discípulos (ou apóstolos).”

Apóstolo e discípulo não possuem rigorosamente o mesmo sentido. Este pode ser usado em lugar daquele, mas aquele não pode ser usado em lugar deste. Expliquemos:
Os apóstolos eram com efeito em pequeno número (doze discípulos especiais, conforme os Evangelhos; treze, se nos estendermos à figura de Paulo de Tarso), todavia os discípulos comuns eram muitíssimos, homens e mulheres (Lc 8, 1-3).
Conhecida é a passagem na qual Jesus oferece missão a setenta e dois deles (Lc 10, 1). Ainda que os números em geral estejam revestidos de simbologia nos escritos bíblicos, é bom discriminar as duas espécies de seguidores.
A missão dos doze apóstolos está em Mt 10, 5-15; Mc 6, 7-13 e Lc 9, 6.

Depois da cena da expulsão dos vendilhões do templo, um grupo ligado ao governo decidiu eliminar aquele homem, já visto como líder revolucionário e violento reformador.”

Antes do evento chamado “purificação do Templo” (Mt 21, 12-17; Mc 11, 15-19; Lc 19, 45-48; Jo 2, 13-22), Jesus já se encontrava, havia muito, em rota de colisão com o alto clero e com os interesses políticos: era um reformador perigoso, dado seu carisma.
O conflito supracitado só exacerbou as rixas já existentes, as quais, a bem da verdade, nasceram de um evento descrito no Evangelho de Lucas. No realizar um comentário na sinagoga de Nazaré, Jesus atribuiu o sentido de uma profecia de Isaías à sua pessoa. Resultado do atrevimento: conduziram-no ao cimo de uma colina a fim de matá-lo (v. Lc 4, 28).
Ademais, as expressões “líder revolucionário” e “violento reformador” só lhe podem ser conferidas com muitas reservas, porquanto podem aludir a uma conduta de contestação à maneira dos sicários, homens de punhal e assassinato.
Essa manifestação de viés belicoso, de insurreição armada, era uma rotina levada a cabo pelos zelotas. A propósito, Barrabás era um deles, conforme afirma a obra Jesus e as estruturas de seu tempo, de Émile Morin.
Por fim, o conteúdo programático de Jesus era avesso ao uso da violência. Dizia Ele: “Deixo-vos a paz, minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá” (Jo 14, 27). Este é só um exemplo dentre muitos.

Sua alegação de que era o Messias e o Filho de Deus convenceu as autoridades da época de que aquilo era uma blasfêmia ridícula.”

Em Marcos, o tema do messianismo de Jesus leva o nome de “segredo messiânico”. O filho de Maria não atribuía abertamente a si o título de messias; fazia-o reservadamente (v. Mc 8, 30; 9, 9), em meio ao diminuto grupo dos apóstolos, posto que se apercebera da visão reducionista dos grupos religiosos de então. Estes, exaustos da dominação romana, não se encontravam preparados para a pacificação das relações sociais e religiosas sob a liderança de um messias desapercebido de armas e violência.
Jesus era messias alternativo, baseado na espiritualidade do servo de Javé. A declaração messiânica, Cristo a faz no curso do processo religioso do Sinédrio, assumindo a natureza de sua missão (v. Lc 26, 64).
Cumpre esclarecer que ele preferia o título “Filho do Homem”, assaz misterioso. Quanto a “profeta”, ele o reivindicou de forma velada. (O espírito da profecia, cumpre salientar, estava extinto desde Malaquias, sendo reacendido na Igreja primitiva, após o Pentecostes.)
Adendo importante: O messianismo do filho de Maria, quem o confirma é Pedro (v. Mt 16, 16), o que levou Jesus a declará-lo, na mesma ocasião, pedra angular de Sua Igreja (Mt 16, 17).
V. Para que Jesus morreu na cruz?, de Klaus Berger; Meu Senhor e meu Deus, de Isac Isaías Valle; Jesus de Nazaré, de Joseph Ratzinger; Jesus de Nazaré, de Günther Bornkamm; Bíblia de Jerusalém; Bíblia do Peregrino; Tradução ecumênica da Bíblia.

... foi inumado e esquecido de todos, exceto de sua mãe, Maria, e de alguns amigos.”

Não há erro rigoroso aqui, senão algumas imprecisões.
Além do apóstolo João, estavam ao pé da cruz Maria, mãe de Jesus, bem como sua irmã Maria (mulher de Cléofas e mãe de Tiago, o Menor, e Judas) e Maria Madalena. Acaso os amigos a que se refere o verbete seriam os discípulos José de Arimateia, membro do Sinédrio, e Nicodemos?
À exceção das pessoas supracitadas, não havia outros amigos ou companheiros dele por ocasião dos eventos que se sucederam à morte hedionda, sobretudo porque temiam o alastramento da perseguição aos seguidores da seita perniciosa.
Importa ressaltar que, à luz dos Evangelhos, uma pessoa foi extraordinariamente presente nos eventos posteriores à morte de Jesus (o que lhe rendeu certos comentários especulativos, se não licenciosos, por parte de autores modernos), a saber: Maria Madalena. Não convém pô-la à margem do ocorrido.


... algumas das mulheres que visitaram sua sepultura encontraram-na aberta (...). Um anjo lhes revelou, então, que ele tinha ressuscitado, subido aos céus, para sentar-se à direita de Deus.”

Convém que eu faça um adendo e explicite uma séria irregularidade.
Os episódios que antecederam a descoberta do túmulo vazio (ou do ressuscitamento de Jesus) são “contraditórios” conforme o Evangelho que os descreva. Mais precisamente, são fontes diferentes para o mesmo acontecimento, narradas consoante a necessidade catequética do hagiógrafo.
As mulheres são Maria Madalena (veja-se como é assídua), Maria (irmã da mãe de Jesus) e Salomé (mãe dos filhos de Zebedeu).
O anjo é uma personagem reincidente na descrição dos evangelistas, mas não participa de eventos propriamente fixos. A passagem no verbete poderia ser, a meu ver, mais bem ilustrada com a citação da existência das variantes a que me refiro.
A IRREGULARIDADE É ESTA: o anjo não disse o que está consignado no verbete. Ele confirma a ressurreição de Jesus e recomenda às mulheres que informem aos discípulos o lugar em que o Senhor voltaria a vê-los: a Galileia (v. Mt 28, 5; Mc 16, 6; Lc 24, 6). O relato de João é sui generis, mas tampouco confirma o que assevera o verbete (v. Jo 20, 1-18).

Benjamin Brenner (...) assegurou que Jesus teria morrido vítima de um coágulo sanguíneo, e não em consequência de sua crucificação. O coágulo teria chegado a um pulmão. Sabe-se que Jesus, descendente de uma família judia de Nazaré, na Galileia, Norte de Israel, sofreria – como outras pessoas dessa origem nessa região – de trombofilia (...). Segundo o mesmo médico, embora Jesus tenha sofrido antes da cruscificação, a perda de sangue pelas feridas que sofreu não teria sido suficiente para provocar a morte. (...) Em 1986, a revista da Associação Médica dos Estados Unidos também mencionou a possibilidade de a morte de Jesus ter sido conseqüência de uma trombose.”

As hipóteses a respeito da morte de Jesus são inúmeras, e este é assunto que jamais se esgotará, conquanto não existam elementos científicos capazes de a determinar.
A par do pensamento de Brenner, há uma porção de especulações. Dentre as mais aceitas, se não a mais difundida, há a da asfixia. O fato de existir propensão de trombofilia na região não é argumento seguro, tampouco suficiente, para determinar uma morte que envolvia tantos fatores. Morria-se de tudo nessa época, na causticidade severa dessa terra; e até hoje de tudo se pode morrer, sobretudo a pedradas de pessoas que se declaram acossadas pela política israelense.
Em face de hipóteses tão divergentes – às quais se juntarão outras, certamente – não me parece conveniente restringir a causa mortis.
Jesus morreu bem antes dos ladrões que o ladeavam no Gólgota, tanto que lhe não precisaram quebrar as pernas (expediente assaz cruel por meio do qual era acelerada a morte do condenado). A paixão de Jesus, em face do que ele representava para a oligarquia política e clerical, com certeza excedeu os castigos corporais infligidos aos malfeitores comuns. A profecia de Isaías (52, 13) sustenta que o Servo não teria sequer feição humana e que as nações e os reis ficariam em estado de estupefação e silêncio.
Enfim, como bem percebem, é assunto que singra ao sabor da maré...

Na teologia ortodoxa, Jesus é Deus feito homem...”

Entendo o que o professor Sacconi quer dizer no usar o adjetivo “ortodoxa”, e com ele concordo, caso esteja se referindo a uma teologia “de caráter rigoroso e tradicional”. Ocorre que o termo pode ser mal interpretado pelos que são faltos de vocabulário. A deparar-se com tal frase, há quem possa considerar que só a Igreja Ortodoxa, a instituição religiosa do Oriente, tenha essa linha de pensamento.
Minha experiência no discutir tal assunto sustenta o que ora digo. Ah, como sustenta!

O primeiro [fato] é que Jesus (...) não deixou absolutamente nada escrito. O segundo é que não se sabe nada da vida de Jesus entre os 13 e os 33 anos de idade. O terceiro é que nada se falou ou se escreveu sobre ele durante os dois séculos seguintes ao de Sua morte. Parece que alguém recordava as doutrinas que esse homem pregava, repetindo-as e explicando-as a uma segunda e a um terceiro. Assim, as suas palavras foram passando de geração em geração, afirma Tolstoi. Admitindo-se que isso seja realmente seja verdadeiro e que só se escreveu realmente sobre Jesus duzentos anos após sua morte, podemos imaginar quantas deformações os seus pensamentos e suas idéias sofreram...”

A descoberta providencial dos manuscritos do mar Morto em 1947 (note-se bem a data) motivou novos e mais profundos estudos da Sagrada Escritura, a ponto de desmistificar antigas fantasias e incongruências da crítica clássica.
Ora, o ilustre escritor russo morreu bem antes de o tema ganhar fôlego científico nos círculos acadêmicos.
Há equívoco histórico tremendo na afirmação de que “nada se falou ou se escreveu sobre ele [sic] durante os dois séculos seguintes ao de Sua [sic] morte”.
Eis o que sustenta a crítica moderna: a fixação, ou a compilação, dos livros do Novo Testamento é que foi ocorrendo no decorrer dos primeiros séculos. As divergências de opinião a respeito da inspiração divina e o cuidado na escolha é que provocaram a demora da definição destes.
Há, pois, diferença entre feitura e escolha.
Ocorre que os textos paulinos (ou os que foram feitos sob pseudonímia) e as epístolas apostólicas (a de Tiago, a de Judas, as de Pedro, as de João, os Atos dos Apóstolos e o Apocalipse) viam-se a par de outros tantos escritos, num amálgama de doutrinas díspares. A Igreja procurou, então, selecionar esses textos a fim de expurgar o que fosse avesso à doutrina. Eliminaram-se os apócrifos, os quais, apesar de piedosos, eram fruto da imaginação transbordante de seus autores.
Notem-se as datações: 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Coríntios, Filipenses, Gálatas e Romanos (entre os anos cinquentas e sessentas); Colossenses, Efésios e Filêmon (de 61 a 63); 1 e 2 Timóteo e Tito (de 63 a 67); Hebreus (antes de 70); Marcos (entre 65 e 80), Mateus (entre 80 e 90), Lucas (aproximadamente 80) e João (entre 90 e 100).
A definição dos livros canônicos é que ocorreu séculos depois, durante o Concílio de Trento (1546), mais de cem anos depois de, no Concílio de Florença, ser esboçado o chamado “cânon longo”.
É sabido que, antes de os originais dos Evangelhos serem redigidos, havia um documento chamado Quelle (= fonte). Nele não vinham expostos os episódios da vida de Jesus, e sim suas palavras, suas sentenças, seus ensinamentos. É inegável, a crítica abalizada o afirma, que os textos primitivos nele se baseiam, o que justifica a uniformidade dos discursos de Jesus nos quatro Evangelhos. V. Bíblia – Palavra de Deus e Chave para a Bíblia, cujos autores já foram citados.
Ora, Sócrates também nada deixou escrito, mas em qualquer estudante primário de filosofia ou letras causam arrepios os questionamentos à autenticidade dos diálogos de Platão... E que dizer de Homero?...
A encher as prateleiras de qualquer bom sebo ou especializada livraria, encontram-se inúmeros escritos a respeito de Jesus, lavrados desde o século II pelos homens integrantes da Igreja primitiva. Falo da apologética, falo do período patrístico: Justino (100), Clemente de Alexandria (150), Tertuliano (160), Orígenes (185) e outros.
Para não só nos fixarmos em documentos de natureza exclusivamente cristã, podemos citar inúmeros autores e obras que se referiram ao Jesus histórico, pouco depois de sua morte, a saber: Plínio, o Jovem, Tácito, Suetônio, Flávio Josefo, o Talmud...
Negá-los é uma incongruência histórica, bem como omiti-los é sinal evidente de desconhecimento de literatura universal. Logo se vê que a fonte de que se valeu o digno professor está equivocada, merecendo imediata reconsideração.
Um breve parecer calcado em análise exegética: Como fugia ao propósito da catequese dos primeiros cristãos, o que ocorreu com Jesus dos 13 aos 33 anos (se é que a faixa etária está correta) é puramente periférico e não atendia as necessidades de instrução dos que aderiam à nova fé. Os textos neotestamentários só querem versar a respeito do aspecto teológico de Jesus, não se atendo à bibliografia do Cristo. O gênero biográfico não era efetivamente algo com que se preocupassem os hagiógrafos (isso seria assunto para algum Ruy Castro hebreu...). A propósito, existe um hiato relativo a esse espaço de tempo nos quarto Evangelhos, o que sustenta a desimportância do período no que tange à matéria doutrinal, reforçando-se a hipótese de que, naquele instante preciso, Jesus progredia no autoconhecimento e na percepção dos valores de sua tarefa.
Documentalmente, que temos da época? Temos apenas esta preciosa e (para muitos) suficiente resposta: “E o menino crescia, tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele” (Lc 2, 40).
V. O Jesus histórico, de Gerd Theissen e Annette Merz; Jesus de Nazaré, de Günther Bornkamm; Jesus Cristo segundo os Evangelhos, de Louis-Claude Fillion; Bíblia – Palavra de Deus, de Valerio Mannucci; Chave para ler a Bíblia, de Wilfrid J. Harrington; Guia para ler a Bíblia, composto de artigos de vários autores; Bíblia de Jerusalém; Bíblia do peregrino; Tradução ecumênica da Bíblia.
A respeito das comunidades primitivas, cumpre verificar História da Igreja, de Pierre Pierrard.

Segundo o grande romancista russo, não há nada que prove ou testemunhe os milagres e muita coisa atribuída a Jesus é mera ficção.”

Conquanto fosse extraordinário escritor (reconheço-lhe o talento) e tivesse filosofado a respeito do assunto, Tolstoi não é autor de referência para a Cristologia.
É sabido que “se convertera”, todavia seus pareceres a respeito de Cristo são muitíssimo particulares. Desconheço disciplina cristológica que o adote; não o vemos nas referências bibliográficas, tampouco em notas ligeiras em obras complexas e imparciais. Além disso, sua concepção pessoalíssima do que poderia ser o cristianismo é contrária ao princípio do vínculo exercido nas comunidades eclesiais primitivas, haja vista que o autor russo era avesso às instituições religiosas. Isso lhe valeu, bem sabemos, a excomunhão da Igreja Ortodoxa em 1901.
A celebração litúrgica era, e é, evento inerente ao ideário cristão e prática a que todos se viam, e se veem, obrigados, conforme os testemunhos de autores da Igreja primitiva, antes que lhe atribuíssem o nome de “católica romana”, “ortodoxa”, “anglicana”, “batista”, “metodista”, “adventista”, etc. O protestantismo, mesmo a contestar a administração e a autonomia do catolicismo romano, preservou de modo notável algumas práticas, dentre as quais se encontra a da assembléia organizada em torno de um pastor.
Como se vê, a despeito da instituição religiosa que se professe, o sitz im lebem dos textos sagrados é sempre o mesmo: a comunidade. Paulo de Tarso, eminente defensor dessa causa, asseverava que a fé surge pela pregação (Rm 10, 17).
Uma divagação pertinente: O exercício das reuniões periódicas dos fiéis, baseadas todas elas em ritos ou práticas comuns, é o instrumento que assegurou e sustenta, até hoje, a existência das três maiores denominações religiosas monoteístas. Esse costume lhes dá uniformidade doutrinal, oferece-lhes uma disciplina moral específica. E ainda que pudéssemos acoimar o dogmatismo religioso de “limitador da liberdade humana”, essa disciplina comunitária não deixa de refletir o aspecto mais primitivo dessas religiões.
Para terminar: Caso o querido professor Sacconi deseje manter Leo Tolstoi como referência no verbete, isso é decisão que lhe assiste, porém temerária, contra a qual se podem insurgir outras críticas mais abalizadas que a minha.
Sobre o valor apologético dos milagres de Jesus, leia-se A cura dos doentes na Bíblia, de Calisto Vendrame.

Deus está presente em todas as coisa – dizia.”

Depois de exaustivamente consultar o texto latino da Vulgata e algumas traduções, não tive êxito na localização da passagem acima, seja nos Evangelhos, seja nos demais livros componentes do Novo Testamento.
Se os dizeres são de algum autor cristão (alguns me veem à mente), é necessário definir o documento e avaliar o contexto da obra.
Enfim, de modo que seja dirimida toda a dúvida a respeito do tema, peço que ao fim da oração seja feita referência ao texto bíblico específico de que foi extraída.

Entre as noções mais claras de Jesus é a totalidade do Universo, sempre visto como um todo, aquilo que Jesus chamava PAI ou DEUS, a Quem se deve muito respeito. Segundo se depreende das palavras de Jesus, a Natureza e o Universo compõem um todo, com suas normas e regras a que devemos obediência.”

A passagem em tela parece resultar da doutrina panteísta, a qual sugere que a divindade seja imanente ao universo, presente em todos os elementos concretos que nos circundam. A propósito, diz-se que o termo “panteísmo” foi cunhado pelo filósofo John Toland, em 1705.
Com base em farta bibliografia, afirmo que o panteísmo é avesso à rigorosa doutrina judaico-cristã, haja vista que fere o princípio da inadequação do absoluto (Deus) com o relativo, contingente e efêmero (o mundo).
O que concretamente se sabe é que ele, Jesus, propõe novas relações nos níveis sociais, incentiva a mudança de vida e a realização de ações eficazes no seio da comunidade, sob a ótica do serviço ao outro, com vistas à promoção do bem comum.
A regra de ouro do cristianismo é: “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles” (Mt 7, 12). É uma máxima que, embora já conhecida na antiquidade, tinha outro viés: “Tudo o que não quereis que vos façam não façais aos demais”.
A sentença, reelaborada por Jesus, estende as regras do convívio social, propondo uma conduta voltada ao benefício do próximo, pois que, a partir desse novo princípio, somos orientados a desejar o bem de quem nos ladeia conforme o bem que queremos para nós. Mesmo para aqueles que não professam a fé cristã, a máxima é considerada brilhante, sobretudo por causa da “subversão” do pensamento anterior.
Jesus é o maior exemplo de que a fé não é alienante, mas, ao contrário, promove a reflexão crítica a respeito da realidade histórica circundante (e contraditória), com isso abrindo espaço à esperança numa sociedade atribulada e pouco fraterna. O filho de Maria é belicoso a seu modo.
Na esfera religiosa, o que se sabe é que Jesus é a intervenção última e definitiva de Deus (Hb 1, 1-2), a Palavra de Deus que se fez carne e montou sua tenda entre os homens (Jo 1, 14), aquele que enfim resgata a imagem pura do Criador verdadeiro. Por meio dele há um convite à experiência da conversão, de forma que se acredite num Deus atuante na vida de todos, não como ameaça ou juízo, mas como salvação e esperança. Enfim, Jesus reaproxima Deus (amante da vida) do povo, ao contrário do judaísmo de então, que O afastara.

crisma

A “extrema-unção” é efetivamente um dos sacramentos em que há o uso do crisma (ou santo crisma). Ocorre que, em rigor, o nome “extrema-unção” é do tempo do Onça (desculpem-me pela ousadia; é delicioso sarcasmo do douto professor, como sabem).
A Igreja Católica Romana, em face da gravidade que o termo herdou no decorrer dos anos, passou a adotar o nome unção dos enfermos para o referido sacramento há algum tempo. V. Código de Direito Canônico e Catecismo da Igreja Católica.

culto

Há uso irregular na definição da expressão “culto de hiperdulia”. Veneração e adoração são, com efeito, termos controvertidos que só podem ser compreendidos à luz do sentido que a teologia lhes empresta.
O verbete diz corretamente que o culto de dulia é “aquele que se dá aos anjos e aos santos, na religião católica”. Nada que opor.
Porém, afirma erroneamente que o “culto de hiperdulia” é “adoração exclusiva da Virgem Maria como mãe de Deus, na religião católica”.
Hiperdulia”, baseado em bom grego, nada mais é que, de forma sucinta, alto grau de “veneração”.
Ora, ambos os termos têm origem no grego: dulia vem de douleia, ao passo que latria vem de latreia; mas não são termos equivalentes: dulia é culto inferior à latria.
Em suma, dulia é culto de veneração, e latria é culto de adoração. O próprio verbete latria do bom dicionário de Sacconi afirma isto: “Culto a Deus, na religião católica”.
Sob o rigor da teologia, não há, nem mesmo no catolicismo, adoração a Maria. O próprio Sacconi o diz, no verbete venerar: “Render culto externo de profundo respeito a (qualquer ser sagrado): (...) o povo brasileiro venera Nossa Senhora Aparecida” [grifo meu].
Enfim, a Deus se rende culto de latria (adoração), a Maria se rende culto de hiperdulia (alta veneração) e aos anjos e aos santos se rende culto de dulia (veneração).

adoração/adorar

Ressalto: são termos controvertidos que só podem ser compreendidos à luz do sentido que a teologia lhes empresta. (Até foi motivo de arroubos do saudoso Napoleão Mendes de Almeida, que censurou a tempo um equívoco de minha parte. O ocorrido, revelar-lhos-ei em outra oportunidade.)
Vamos ao que interessa:
O verbete adorar consigna: “Os católicos adoram imagens, o que não é aceito pelos evangélicos”.
O verbete adoração registra: “A adoração às (ou das) imagens é tradicional prática católica”.
As frases são afirmativas, confirmam uma possível conduta herética dos católicos, porém...
Uma vez que conheço bem ambas as doutrinas, quer a protestante quer a católica (até por laços de estreita amizade), não tenho dúvidas em afirmar que essa censura específica de idolatria não se encontra no rol das objeções de todas as denominações reformistas, sobretudo quando nos referimos a instituições protestantes tradicionais.
Na verdade, ALGUMAS denominações evangélicas “pensam”, “suspeitam” ou até “acreditam” (verbos mais precisos) que os católicos cometam tal heresia. Melhor dizendo, acham que os católicos adoram imagens, ocultando tal prática sob a veste do termo “veneração”.
Explico: O que transita em meio ao povo fica à mercê de excentricidades e exageros, não é? Na religião não seria diferente, haja vista que nela pululam toda a sorte de desvios catequéticos, a exemplo da devoção exacerbada que alguns católicos rendem às imagens. É fato que isso corrobora a falsa ideia da idolatria. Aliás, o professor Sacconi fala magistralmente sobre o “culto indevido”, no verbete culto.
Conforme esclarece o Catecismo da Igreja Católica, “adorar” é ato que só pode ser conferido a Deus (ou a Javé, nome próprio dEle), o que não se estende a imagens que dEle se façam. Por exemplo, nem o mesmo Jesus (reconhecido pela cristandade como encarnação de Deus) pode ser adorado em “imagem de barro”, pois que a imagem, conforme sabemos no século XXI, não possui as qualidades a ele inerentes.
A imagem, esta nada pode, a não ser levar piparotes em programas da madrugada...
Aliás, todos temos apreço pelos objetos que recordam nossos pais e filhos. Não é justo? Oferecer-lhes mimos e cuidados não é próprio de nossa natureza? Por extensão, “adoramos” o que possa recordá-los (até uma mísera xicarazinha rachada). Porém, no âmbito da teologia, o termo “adorar”, afora o sentido figurado acima, tem função restrita (v. acepção 3 do verbete “adoração”).
Então, se o dicionário (o bom dicionário, reforço) diz que “os católicos adoram imagens, o que não é aceito pelos evangélicos”, pessoas desavisadas podem ser levadas acreditar no desvirtuamento doutrinal dos católicos. Melhor seria: “... ALGUNS protestantes censuram os católicos, porque JULGAM que estes praticam adoração a (ou de) imagens”.
A propósito, a própria expressão “adorar a Cruz” (acepção 1 do verbete adorar) é fortemente combatidas no âmbito católico, porquanto enseja equívocos gravíssimos. A Igreja Ortodoxa, fugindo à celeuma, adota há muito tempo os ícones em lugar das imagens.
Para não reacender a cultura iconoclasta nem as falsas interpretações religiosas num mundo já tão repleto de imposturas, sugiro a mudança das frases que exemplificam os verbetes em referência.

Ponho termo nos meus pareceres... Em breve tenciono enviar sugestões de natureza gramatical a essa editora, também relativos às obras recém-editadas do estimado Sacconi, sempre com o sincero objetivo de contribuir para o sucesso de seu magistério.
Enquanto me despeço, torço para que essa admirável empresa prossiga sem percalços na gratificante tarefa, ainda que árdua, de levar saber e civilidade ao povo brasileiro.

Gustavo Vieira de Araújo

Dra Olga Sodré - EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL DE DIÁLOGO E ENCONTRO COM OS MONGES NA TORRE DE BABEL

(A Doutora Olga Sodré trabalha atualmente como psicóloga clínica e psicóloga social (CRP - 5/6371), é doutora em filosofia (Paris - Sorbonne), com tese sobre a filosofia indiana, e doutora em psicologia clínica, pela PUC-Rio, com tese sobre o diálogo inter-religioso monástico. Tem pós-doutorado em filosofia (Instituto Católico de Paris), pós-doutorado, no Instituto de Medicina Social da UERJ, e integra o Grupo de Trabalho  Psicologia e Religião da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia)).


1.      INÍCIO DO DIÁLOGO E CONFRONTO COM O MATERIALISMO E A FÉ

Sinto-me profundamente enraizada na espiritualidade do diálogo de experiência, pois ela me permitiu uma síntese pessoal de uma longa caminhada através de diferentes tradições religiosas, nas quais fui realizando minha busca de Deus e aprofundando meu percurso espiritual até encontrar o diálogo monástico através do qual consegui vislumbrar a unidade desse multifacetado percurso. O desafio de me confrontar com estes diferentes caminhos e minha formação universitária exigiram de mim um esforço de compreensão que me levaram a pensar as questões do diálogo e da experiência espiritual, meditando sobre o assunto e seu sentido na situação do mundo em que vivemos. Nesse artigo para o Dilato Corde, proponho-me a resumir minhas principais experiências nessa direção, integrando-as às reflexões teóricas e às pesquisas que me suscitaram.  Procurarei mostrar através do relato de minha história de vida que essas experiências espirituais refletem bem a situação do cristianismo no contexto do mundo atual, pondo, contudo, em evidência a presença de algo que escapa a esse contexto. Meditando sobre minha vida, consigo perceber que essa Presença orientou minha existência ao longo da caminhada por diferentes religiões em direção ao diálogo e à contemplação de Deus.
Na raiz de minha história de vida encontra-se não apenas a experiência de um diálogo infantil com Deus, mas também de um diálogo entre o materialismo e a fé cristã, de modo que me parece fundamental partir dessa experiência, a fim de melhor esclarecer o meu percurso e ilustrar meus pontos de vista a esse respeito. Nasci em uma família de formação católica, mas que se afastou da fé. Minha avó materna tornou-se espírita, meu pai materialista e minha mãe era uma católica não praticante. Embora meus parentes tenham se distanciado do cristianismo, meus pais se casaram na Igreja Católica e fui batizada. Inicialmente, colocaram-me num colégio particular não religioso, mas no qual recebi informação religiosa. Quando estava no primeiro ano escolar, foi me oferecida a possibilidade de fazer a primeira comunhão, e esse foi, sem dúvida, um momento crucial em minha vida e interessante para a presente reflexão, pois nele surge algo que extrapola meu contexto social. Nesse caso, a primeira comunhão não era obrigatória e nem todas as crianças responderam afirmativamente ao convite, mas me senti como que chamada para esse importante acontecimento religioso.
Foi um dos momentos no qual percebi claramente um impulso para Deus. Desse modo, parece-me evidente que, desde criança, e independentemente do meu contexto familiar, tive uma forte inclinação para Deus, que se revelou mais tarde como um intenso desejo e uma busca espiritual. Através do estudo de diferentes religiões, pude posteriormente não apenas melhor entender este impulso ou inclinação como um desejo de Deus, mas também encontrar uma explicação para o arrebatamento, enlevo e encanto experimentado em minhas singelas conversas com Deus. Foi um conforto descobrir que outras pessoas sentem o mesmo impulso e poder refletir sobre essa relação com Deus, considerada por muitas pessoas como algo imaginário e fora da realidade. O estudo permitiu-me constatar que apesar do contado com o divino ter começado de uma forma infantil, tratava-se, desde o começo, de um profundo e verdadeiro diálogo com Deus.
Vejo-me ainda pequena, querendo muito a experiência da primeira comunhão e insistindo para poder realizá-la. Não sei por que queria tanto, mas me lembro perfeitamente que o desejo era intenso e me levou, embora uma criança dócil e introvertida, a ir contra a orientação da minha família. Meus pais me explicaram que eu já fora batizada, e que a comunhão não era necessária, procurando em vão me dissuadir. Continuei insistindo de um modo que não era habitual em mim.  Minha mãe ficou surpresa com o meu empenho. Lembro-me, até hoje, que a atmosfera entre nós era cordial, e que ela exprimia simplesmente seu ponto de vista. Ela achou até graça desse empenho e acabou concordando. A eclosão desse impulso germinaria mais tarde através do ensino religioso, mas acho importante o fato que ele tenha brotado do meu coração de uma forma intensa e espontânea que nada tinha a ver com o meio escolar ou familiar.
Esse impulso gerou uma intensa experiência espiritual infantil, revelando em mim a tendência humana para a busca do divino. Em outras ocasiões da vida, este impulso voltaria a se manifestar e me levaria a uma busca espiritual por diferentes caminhos, cada vez mais independentemente do contexto intelectual no qual fui formada e ao qual continuei integrada. A partir desse impulso, a experiência espiritual tornou-se intensa, ao longo de toda minha infância, o que se traduzia pelo fato de eu preferir mais “conversar com Deus” do que brincar. Eu brincava também, mas o momento importante e secreto do meu dia era quando eu me recolhia para essa conversa. Pouco a pouco, acabei considerando Deus o meu melhor amigo. Os psicólogos falam muito sobre o “amigo imaginário”, que as crianças têm na infância. Não sei, porém, se é muito freqüente a escolha de Deus como o melhor amigo. Não me recordo, também, quem me falou de Deus pela primeira vez, nem que alguém tenha me ensinado a “conversar com Deus”. De qualquer maneira, eu tinha um modo próprio de conversar com Ele, que era caracteristicamente infantil. Como gostava muito de histórias, eu sempre começava a conversa contando histórias para Deus.
Nessa época, Deus não tinha para mim uma forma precisa. Sentia - O como uma presença e só sei que essa Presença era imensa, bastante suave e sempre muito rica e variada.  Parecia-me uma pessoa (pois eu O considerava um amigo), mas que era, ao mesmo tempo, enorme e sem forma definida. Recordo-me da sensação de ser como que elevada por algo semelhante a uma enorme mão, e ficar como que flutuando. Eu gostava também de me deitar na grama, olhando o céu, e sentir-me como que me dissolvendo no azul. Anos mais tarde, ao aprofundar meu estudo da meditação da ioga, descobri serem essas experiências relatadas por pessoas que atingem estados avançados de meditação. Para mim, contudo, essas experiências ocorreram de forma natural, e vejo nisso uma graça e um chamado para a vida contemplativa.
Por volta dos sete ou oito anos, ocorreu outro fato importante em relação a essa “conversa com Deus”. Assisti a um filme que muito me impressionou sobre a vida de Joana d’Arc, com Ingrid Bergman no papel principal. Identifiquei-me com ela a partir do relato de suas experiências espirituais, que correspondiam às minhas “conversas com Deus”. Atraiu-me também a sua fé, o modo como enfrentava as autoridades do mundo e sua capacidade de luta. Ela passou a fazer parte de meu universo infantil e eu gostava de “brincar de Joana d’Arc”. Nessa época, quando me perguntavam o que queria ser quando crescesse, respondia para espanto geral que queria ser Joana d’Arc. Eu não sabia ainda que tal escolha pudesse estar relacionada com o desejo de ser santa. Para os adultos em torno de mim, isto fazia ainda menos sentido, de modo que começaram simplesmente a dizer que eu era mesmo parecida com Ingrid Bergman.
Não sei se partilhei minhas experiências espirituais com alguém, na infância. Acho que permaneceram secretas, e só fui me recordar delas, anos mais tarde, ao aprofundar minha experiência interior em psicoterapia e na meditação. Percebi, então, que já meditava, quando criança. As experiências espirituais infantis foram assim integradas às minhas práticas espirituais de adulta. Não sei, também, como as experiências infantis se interromperam, mas me pergunto se essa interrupção não teve algo a ver com a importância crescente do pensamento racional e com o ensino escolar. Digo isso, por que meu mergulho interior, durante um processo psicanalítico, parece ter sacudido minha construção racional, possibilitado uma emergência dessas experiências. Só sei que elas ficaram sepultadas durante anos, e que o final da minha infância, após os nove anos, se escoou tranqüilamente, na brincadeira e no estudo, apesar de, nessa época, eu já estar estudando num colégio católico. Nesse período, recebi uma catequese que resumia os princípios e idéias da doutrina cristã e acabei, mas acabei esquecendo minhas experiências contemplativas.
Minha aproximação com o materialismo começou quando entrei na adolescência e passei a colocar questões para meu pai sobre a vida e o mundo em que vivíamos. Começou, então, um diálogo entre materialismo e fé, que foi bastante enriquecedor e me abriu novos horizontes. Conversando com meu pai, descobri que ele era materialista e comecei a procurar entender o que isso significava e a questioná-lo a respeito. Fiquei, então, dividida entre as explicações religiosas e as explicações materialistas. Nesse período de minha vida, após os anos cinquenta, eu estudava num colégio religioso das Beneditinas Missionárias de Tutzing, no Rio de Janeiro, e me interessava muito pela Bíblia, tendo ganhado, inclusive, um concurso bíblico entre os vários colégios cariocas. Olhando retrospectivamente, parece-me, no entanto, que minha fé já não tinha mais raízes nem numa experiência espiritual nem numa fundamentação racional mais sólida. Recebi dessas beneditinas uma excelente formação humana e religiosa, que não me transmitiu, no entanto, os fundamentos da contemplação beneditina nem me preparou para o embate da fé com um mundo em intensa transformação.
Assim sendo, num primeiro momento, o materialismo sobrepujou essa fé sem sólidos alicerces e eu me afastei de Deus e da religião católica. Empolgada pelo meu envolvimento com a vida intelectual, amorosa e política, só anos mais tarde percebi o vazio interior deixado por esse afastamento. Apesar dos erros cometidos em função desse afastamento, considero que o diálogo com meu pai em torno da questão do materialismo e da fé foi muito importante para minha formação, sobretudo, pelo seu caráter profundamente democrático. Ele não tentou me convencer de modo impositivo, mas pelo estudo dos autores aos quais me introduziu. A ausência de autoritarismo, de pretensão sobre as próprias idéias e o estímulo, para que eu fizesse minhas próprias opções de forma autônoma, propiciaram-me uma experiência positiva do diálogo com o materialismo. Esse diálogo e o interesse que me despertou pela ciência levaram-me a considerar, até hoje, como muito estimulante e frutífero o intercâmbio entre materialismo e fé ou entre ciência e religião.
Devo, portanto, a meu pai minha introdução ao diálogo, mas tive que fazer uma longa caminhada até sair do diálogo no plano das idéias, aprender a lidar com as tendências autoritárias e destrutivas tanto fora como dentro de mim e chegar ao diálogo de experiência no reconhecimento de si mesmo e do outro. Foi preciso dar vários passos antes de tomar consciência desse nível do diálogo, que só ficou realmente mais claro para mim quando encontrei os monges do DIM. Descobri ao longo dessa caminhada que o combate para a superação das tendências de dominação e destruição não pode ser apenas externo ou limitar-se ao mundo das idéias. Ele é também um combate interior para enfrentar as tendências e forças destrutivas presentes em todos os seres humanos. O diálogo implica um percurso no desenvolvimento da relação com o outro, uma longa aprendizagem, um combate permanente para a transformação dos conflitos destrutivos em conflitos construtivos até se começar a desenvolver relações amorosas de reconhecimento mútuo.
Ainda no final da minha adolescência, ao ingressar na atividade política, tive a ocasião de encontrar outros materialistas, que me pareceram pessoas íntegras e com grandes qualidades humanas, embora tenha notado, ao refletir sobre elas posteriormente, que havia nelas e inclusive em meu pai, uma ausência da luz espiritual que passei a conhecer melhor pelo aprofundamento do contato com a espiritualidade. Distingo, portanto, o materialismo humanista e idealista dessas pessoas do materialismo consumista e pagão que se alastra pelo mundo contemporâneo[1]. Meu retorno à espiritualidade, anos mais tarde, foi para mim fundamental, mas o contato com o materialismo humanista me permitiu melhor enfrentar esse outro tipo de materialismo. A sólida formação materialista recebida, em casa, continuou sendo muito útil não apenas no campo da pesquisa científica, mas também para a compreensão da minha época e para o diálogo com o meio intelectual, profundamente marcado pelo materialismo. Pude manter, desse modo, ao longo da vida, um diálogo positivo entre materialismo e fé, sobretudo, após ter reacendido a chama da fé em meu coração. Minha experiência de um impulso primordial para Deus e a experiência da orientação posterior do meu impulso para a vida material e sexual levaram-me a refletir muito sobre a questão do impulso e do desejo, na vida no mundo e na relação com Deus.

2. EROS ENTRE OS DESEJOS DO MUNDO E O DESEJO DE DEUS

Minha ruptura com a religião, no final da adolescência, tem suas raízes em problemas, que começavam apenas a emergir, nos anos cinquenta, e que não cessaram de tomar proporções cada vez maiores, até os dias de hoje. Olhando retrospectivamente minha própria caminhada, percebo que lidei de modo diverso com esses problemas ao adotar, no final dos anos cinquenta, uma perspectiva materialista e ao retomar, no final dos anos setenta, a perspectiva espiritual. Nos anos sessenta, ingressei na universidade e vivíamos, no Brasil, um momento de grande efervescência social e política, que despertou em mim um forte desejo de mudar o mundo e as relações entre as pessoas. De modo sucinto, pode-se dizer que minhas divergências com a religião se situavam no campo político e no campo amoroso. As religiosas do colégio beneditino, onde estudava na época, pareciam-me alheias e defasadas em relação às questões colocadas pelas mudanças sociais em curso. As lutas feministas, a emancipação da mulher, as mudanças nas relações sexuais e a crise na família começavam a crescer e meu ingresso no meio intelectual me levou a tomar parte ativa nesse processo, num rumo diverso ao apontado pela religião católica.
No fundo, eu procurava lidar com meus próprios impulsos e desejos, o que só foi sendo conseguido através de uma longa caminhada pela psicologia profunda e pela espiritualidade. Assim sendo, não acredito que se possa dialogar com o jovem e com as pessoas em geral, na atualidade, sem abordar de frente essa questão e, sobretudo, sem ter lidado com os próprios impulsos e se sentir espiritualmente confortável a esse respeito. Anos mais tarde, ao estudar a filosofia e a espiritualidade indiana (Sodré, 1985 e 1989) [2], interessei-me por uma teoria do impulso primordial da consciência para o divino[3]. Essa teoria se refere a um desejo livre e criativo. Nele não há ainda o apego a um objeto, mas apenas um impulso de vida, de criação e de amor, que nasce do âmago do ser. Em geral, a reflexão sobre o desejo é relacionada pela filosofia e pela psicologia da ioga ao desejo de objetos (raga) e à fantasia do mundo (Maya)[4], mas os mestres da corrente filosófica e espiritual por mim estudada distinguem bem o desejo de Deus daqueles suscitados pelos diferentes objetos que nos cercam, situando esse desejo na raiz do impulso e em relação ao divino[5].
A experiência do contato com Deus, na infância, e a frustração experimentada na busca humana de satisfação através dos objetos ajudaram-me a entender a explicação dos mestres da ioga a respeito da diferença existente entre o tipo de satisfação proporcionada pela busca de objetos e o estado de felicidade no repouso em Deus. A meditação da ioga me ajudou a compreender que o ser humano almeja a esse estado de felicidade, e que ele não pode ser conseguido por nenhuma realização desse mundo. Pude vivenciar que as demais conquistas fornecem apenas uma satisfação passageira, o que provoca uma corrida incessante atrás de novos objetos. As práticas espirituais e o conhecimento da dinâmica do desejo me possibilitaram, portanto, distinguir paulatinamente a diferença entre a satisfação de um contato profundo com Deus dos outros tipos de satisfação do mundo.
Fui assim aprendendo a lidar com meus impulsos, a descobrir a importância, o sentido e a grandeza do desejo humano, ampliando meu contato com a força e a criatividade de um impulso livre, que não está condicionado pelos interesses externos e está enraizado em sua fonte divina. Cheguei, então, à conclusão que o ensino religioso não pode ser baseado apenas em idéias e proibições, mas precisa estar baseado na experiência do contato direto com Deus, de modo a liberar o impulso humano e conduzi-lo através de um processo de desenvolvimento espiritual. Em diferentes tradições religiosas, esse desenvolvimento é descrito como uma ascensão, sendo freqüentemente associada aos símbolos da montanha, da aspiral ou da escada. Foi, entretanto, na própria Bíblia e no ensinamento beneditino que encontrei as mais belas explicações a esse respeito, e lamento que elas não sirvam de base à catequese ensinada aos nossos jovens.
Um dos grandes desafios da religião parece-me estar justamente na maneira de lidar com os impulsos e desejos, apresentando uma perspectiva amorosa, que seja realmente uma alternativa em face de uma sociedade materialista e consumista. Não basta ditar regras de conduta, é preciso mostrar que a dimensão erótica do ser humano está relacionada à força de vida, tem uma dimensão espiritual e uma função fundamental na relação com Deus. Foi só quando entrei em contato com a vida dos santos, que percebi o sentido e a possibilidade de redirecionar minha tendência apaixonada para uma plenitude muito maior de ser e amar. Compreendi, então, que a força vital pode ser desperdiçada na multiplicação incessante dos desejos ou ser unificada e redirecionada para a própria fonte do amor. Essa descoberta ocorreu inicialmente na Índia, pelo conhecimento de santos hindus, mas provocou um retorno ao cristianismo, seguindo as pegadas dos santos cristãos apaixonados por Deus. Minhas pesquisas sobre o desenvolvimento espiritual partiram do estudo do amor apaixonado dos santos por Deus. Eles me revelaram através dessa paixão e de sua manifestação em suas naturezas extremas, uma dimensão do divino, muito maior do que a pequenez dos recipientes humanos pode produzir ou mesmo imaginar. Contemplando os dons que os santos manifestaram, os milagres e obras que realizaram, é possível vislumbrar a fonte mesma de onde brotaram essas realizações e perceber um amor que transborda e transforma o próprio recipiente.
Meu retorno à vida espiritual, após muitos anos de afastamento e recobrimento do impulso espiritual pelo materialismo, ocorreu por ocasião de minha primeira visita à Terra Santa. Vivia, então, na França e trabalhava na UNESCO e num Laboratório de Psicologia Social. Fui como turista, pois desejava ter a experiência de um kibutz. Ao entardecer, tomei um pequeno caminhão que levaria nosso grupo para a região da Galiléia, no sudoeste de Nazaré, onde este estava instalado. Ao entrar no caminhão, respirei o ar da noite que chegava e senti o cheiro da terra. Uma idéia estonteante tomou conta de mim: os pés de Deus haviam pisado naquela terra! Senti-me tomada por uma profunda e estranha emoção. Precisei me segurar para não ceder ao impulso de saltar para beijar aquele chão. Não me recordo o nome do kibutz, mas me lembro da agradável convivência da vida comunitária, da alegria e fartura das saladas frescas que preparávamos nas grandes mesas do refeitório coletivo. Gostava de trabalhar no campo, colhendo algodão ou girassóis. Nos intervalos, costumávamos sentar num gramado verde, perto da plantação para descansar, e meus olhos repousavam numa montanha, que dominava serenamente o planalto da Galiléia.
A montanha atraía meu olhar, e seu nome ficou registrado na minha memória: Tabor. Nada sabia, contudo, naquela época, sobre os acontecimentos bíblicos nela ocorridos. Certa noite, eu tive um sonho que muito me impressionou. Nele, via-me sentada no gramado, contemplando o monte Tabor, quando ouvi um som que parecia sair do azul do céu. Quando o som se tornou mais nítido, identifiquei-o como a voz de Deus me chamando do alto da montanha. Ao começar a escalada, meus pés tocaram a terra e esta me pareceu como sendo calcária e cheia de pedras, mas logo percebi que dela brotava uma luz intensa que fazia com que seus pedregulhos se transformassem em diamantes. A terra era iluminada por uma luz radiosa que jorrava de dentro dela. A montanha transfigurou-se e uma profunda nostalgia se apoderou do meu coração diante da beleza e da força daquela rocha luminosa. Ouvi, então, a voz de Deus, que parecia me dizer: Não precisa ficar triste, esta terra é também sua. Você pode pegá-la. Enchi dois baldes de terra e pedras brilhantes. Carregando um balde em cada mão, continuei a subida imersa na luminosidade da montanha. Meu coração estava repleto de alegria com minha dupla porção. Sentia ter conseguido uma herança mais preciosa do que o ouro puro.
Voltei para minha vida em Paris muito impressionada com o sonho. Um amigo judeu me levou a uma professora de cultura judaica, que era cabalista, para que ela o interpretasse. Esta me disse ter eu recebido parte da herança dada por Deus a Israel, assim como a possibilidade de uma ascensão espiritual para Deus. Meus amigos mais próximos eram judeus, e eu os sentia como sendo minha família. Freqüentemente me diziam que eu parecia judia. Desse modo, a interpretação correspondia a um sentimento real de amor pelo povo judeu. Fui convidada pela professora a fazer cursos e a realizar práticas religiosas judaicas, no Centro Edmond Fleg[6] de Paris. Logo me integrei muito bem na comunidade religiosa que freqüentava, e sentia especial alegria em participar do shabat, o dia consagrado pelos judeus a Deus. No último momento, contudo, recuei diante da possibilidade de uma conversão ao judaísmo.  Algo em meu coração me dizia que, apesar do meu grande amor por aquele povo e aquela tradição, esse não era o chamado de Deus transmitido em meu sonho. Anos mais tarde, ao retornar ao cristianismo, na década de noventa, quando já nem me lembrava mais daquele sonho, fui a uma reunião do Círculo Bíblico de minha paróquia, no Rio de Janeiro. O grupo preparava o trecho do próximo domingo[7], no qual se celebraria a Festa da Transfiguração do Senhor. O texto narrava que, após o primeiro anúncio da paixão, Jesus tomou Pedro, Tiago e João, e os levou a uma montanha, na qual se transfigurou diante deles.
Quando estávamos lendo este texto, fiquei atônita ao lembrar o sonho da montanha. Meu olhar foi atraído por uma nota de roda-pé, que me esclareceu o chamado do sonho. A nota explicava que o Monte Tabor era, segundo a interpretação tradicional, a montanha a que se referia o relato da transfiguração de Jesus. Tive assim um sinal claro e significativo que apareceu logo em meu primeiro contato com a leitura da Palavra de Deus, na Bíblia. Tomei assim consciência de ter sido chamada a participar da contemplação da divindade de Cristo, revelada aos mais íntimos discípulos, no Tabor. Ele era a montanha transfigurada, a rocha brilhante mais preciosa que o ouro puro. Apesar desse vislumbre espiritual, foram necessários anos para entender o valor dessa rocha brilhante e nela estabelecer os alicerces de minha casa. Parece-me incrível que apesar dessas experiências tão fortes, eu tenha demorado tanto para mudar o rumo da minha caminhada humana até me instalar de modo mais estável sobre essa rocha.
Essa mudança de rumo ocorreu através de uma passagem pela Índia e pela espiritualidade oriental, tendo me levado de volta ao diálogo com Deus e, posteriormente, ao catolicismo e ao diálogo inter-religioso monástico. Após a experiência na Terra Santa e o contato com a espiritualidade judaica, comecei a perceber cada vez mais nitidamente o vazio da vida mundana e acadêmica e a aspirar a algo diferente que não sabia muito bem o que poderia ser. Já trabalhava, então, como psicóloga clínica e participava com sucesso das transformações introduzidas pelas novas terapias psicossomáticas, nas quais se manifestavam fortes influências orientais. Em 1978, recebi um convite para acompanhar um grupo de universitários à Índia. Numa estranha coincidência, meu bilhete foi marcado para três dias antes da chegada do grupo a Bombaim, o que me deu a possibilidade de deixar as luxuosas dependências do hotel Taj Mahal para ir visitar um renomado mestre de meditação, num pobre vilarejo próximo dessa cidade.
O impacto de entrar em contato com um santo vivo da tradição indiana e poder perceber o estado espiritual no qual estava instalado foi fulminante! A serenidade, a força espiritual, o amor, a alegria que dele jorravam e a liberdade, espontaneidade e leveza de suas expressões e movimentos não tinham paralelo com nada que tivesse visto anteriormente, pondo em evidência o estado de contração e secura mental da vida intelectual na qual eu vivera mergulhada até então. O desejo de atingir esse estado mental reorientou radicalmente o meu interesse para uma prática intensa da meditação. Dediquei-me com empenho ao aprofundamento do estudo da filosofia indiana para poder melhor entender os ensinamentos que esse mestre transmitia sobre a expansão da consciência e a realização do ser. Esse ensinamento me pareceu muito valioso, e, entendi por que os monges que cercavam meu mestre de meditação haviam largado tudo para seguirem suas pegadas rumo ao divino, sentindo-me cada vez mais atraída pela opção dos monges.

3. MÍSTICA ORIENTAL E RETORNO AO CATOLICISMO

Em 1980, voltei ao Brasil, trazendo comigo o ensino desse tipo de meditação e, durante quatorze anos, passei longos períodos no ashram ou comunidade espiritual reunida em torno desse mestre, aprofundando meu estudo e prática do caminho por ele proposto para desenvolvimento espiritual. Os mestres da ioga ensinam um caminho espiritual de interiorização e expansão da consciência que tem como base um processo corporal e mental de integração e ascensão da energia humana. Nesse processo se busca orientar e direcionar o impulso sexual para a vida espiritual através de uma prática da continência sexual conhecida como brahmacharya[8]. Através da prática do brahmacharya, a ioga aborda, portanto, a dimensão psíquica e espiritual da energia, procurando a reunificação das polaridades humanas (o pólo positivo e ativo e o pólo negativo ou passivo) para a elevação do ser humano em direção ao divino[9]. O ensino dessa prática de continência é transmitido através de símbolos da cultura indiana como um processo de integração da componente feminina e da componente masculina da psique, que são representadas pelo deus Shiva e pela deusa Shakti. Ao contrário do Ocidente, a cultura indiana valoriza, então, o celibato monástico e a virgindade antes do casamento. No ocidente, a questão foi pouco aprofundada e ficou praticamente desconhecida fora do contexto religioso.
Comecei a praticar a meditação a fundo, sem me preocupar muito com as questões morais e sexuais, obtendo rapidamente resultados surpreendentes, porém através de minha própria experiência fui apreendendo o valor do celibato. Trabalhando e morando, em Paris, desde 1966, eu vivia no meio intelectual francês, pondo em prática as idéias em voga nesse meio sobre o “amor livre”, sobre a liberdade da mulher e sobre a importância da realização dos impulsos e prazeres. Fiquei, pois, impressionada ao perceber como os hindus direcionavam a sexualidade para a vida matrimonial e para a vida espiritual[10]. Durante minha permanência em minha comunidade espiritual (o ashram perto de Bombaim), eu seguia simplesmente a disciplina e a ascese recomendadas. Conseguia, assim, um estado de paz, alegria, satisfação comigo mesmo e de grande força e clareza mentais. Inicialmente, ao voltar a Paris, eu continuava levando minha vida anterior, até que percebi o quanto isso desgastava e enfraquecia toda a energia espiritual acumulada nos longos períodos de prática intensa.
Desse modo, tornou-se claro para mim por que os monges fazem os votos de brahmacharya e praticam o celibato. Com base na prática da meditação, no estudo da psicologia ensinada pelos mestres indianos e em minha experiência pessoal sobre a sexualidade compreendi a importância do celibato e fiz interiormente os meus votos passando a me considerar, desde o final da década de setenta, como uma monja vivendo no mundo. Tendo tomado minha opção de união com Deus, minha decisão da prática do celibato tinha como objetivo seguir o caminho proposto pela ioga de voltar o impulso humano para dentro e para o alto (e não para baixo e para fora, em direção ao mundo externo). De acordo com a concepção do brahmacharya, a vida espiritual una e consagrada corresponde a uma proposta de elevação espiritual do impulso humano na sua totalidade. Ela permite de distinguir a escolha do celibato da recusa da sexualidade ou da recusa de um companheiro do sexo oposto. No caso da vida una, abre-se apenas mão de uma união externa e complementar humana para buscar-se uma união interior e espiritual com Deus.
Minha escolha da vida una consagrada foi uma opção interior de união com Deus, não correspondendo a nenhuma adesão ao hinduísmo. Minha opção pelo caminho da meditação e da vida monástica no mundo não foi acompanhada de uma aceitação das concepções religiosas hindus sobre a reencarnação, a adoração das diferentes divindades, a divisão em castas, a relação com os estrangeiros, etc. Pude assim continuar, mesmo depois de meu retorno ao catolicismo e até hoje, a prática da meditação e do celibato visando apenas o movimento de interiorização da consciência e a unificação do impulso como forma de elevar o meu espírito e preparar o meu ser para as manifestações mais sutis do plano espiritual e do diálogo com Deus. Encaro essas práticas como uma postura de abertura para Deus e para a escuta do que Ele propõe para mim e para minha vida, despojando-me das construções do ego de modo a tornar-me aberta e livre como uma criança que não foi ainda moldada pela vida do mundo. Não atribuo, portanto, nenhum mérito a essas práticas em si, nem procuro através delas atingir algum estado mais avançado de desenvolvimento espiritual apenas com essas práticas, pois acredito que esse desenvolvimento só possa ocorrer em parceria com a graça de Deus, numa união amorosa que não está diretamente relacionada ao estado da mente ou à prática do celibato. Essas duas práticas apenas preparam o terreno
Foi na comunidade espiritual de meu mestre de ioga, na Índia, que voltei a ouvir falar de Jesus Cristo e dos santos católicos. A comunidade comemora as principais festas das tradições religiosas dos discípulos ocidentais, entre elas o Natal, e lendo a belíssima revista dessa tradição da ioga passei a conhecer o caminho da mística e da contemplação dos santos católicos que o haviam percorrido, como S. João da Cruz e Santa Tereza d’ Ávila. Os textos da revista se referiam a eles e a Jesus com grande reverência, mas a Ele se referiam como um mestre divino igual aos outros mestres também considerados como divinos dentro da ioga. A reverência pelos santos que trilharam o caminho do Amor de Deus em outras tradições religiosas me parecia comovente, porém, tendo sido educada na tradição católica, eu estranhava a maneira como Jesus era apresentado na versão hindu adotada pelo mestre de ioga dessa tradição e aceita por sua comunidade. O enfoque hinduísta do Cristo era diverso do apresentado pelos Evangelhos e pela tradição cristã, de modo que eles pareciam falar de outra pessoa distinta da que eu conhecera, no contexto católico. Voltei, então, a ler os Evangelhos, procurando melhor esclarecer essa questão da divindade. Quanto mais eu relia os Evangelhos e meditava sobre as palavras de Jesus sobre Ele mesmo, mais difícil me parecia ignorar as diferenças[11]. Cheguei a um ponto em que minha certeza que Jesus era Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, tornou impossível aceitar a interpretação que colocava outros mestres espirituais no mesmo nível.
Foi nesse momento, que uma experiência espiritual em meditação desencadeou meu movimento de retorno ao catolicismo. Era um Natal do início da década de noventa, e eu estava sentada em meditação, no pátio desse ashram indiano, na área rural de Bombaim, com os demais membros da comunidade reunidos em torno da nossa mestra de meditação. Sentia-me coberta pelo céu estrelado, mergulhada no profundo silêncio da meditação conjunta e envolta pelo ar perfumado daquela agradável noite tropical de dezembro, quando senti passar por mim uma presença inigualável. Inicialmente, imaginei que essa presença fosse a da mestra de ioga que estivesse passando entre nós, e abri os olhos para ver, porém ela continuava sentada em sua cadeira.
Voltei a fechar os olhos e, entrando em meditação, senti novamente a presença e procurei melhor fixar minha atenção interior nela. Consegui perceber que essa presença sutil era masculina, porém sua energia era distinta daquela que sentia na presença do mestre anterior já falecido. Era uma presença masculina num corpo sutil de forma esguia, diáfana e suave da qual emanava uma força poderosíssima. Todo resto em volta havia desaparecido. Concentrando toda minha atenção nessa figura delineada na tala da minha consciência completamente interiorizada, pude, então, captar uma doçura amorosa indescritível e inebriante que tocou profundamente meu coração, de onde surgiu a certeza: Era Jesus! Foi como se ele tivesse vindo pessoalmente me chamar de volta para a comunidade de seus discípulos. Escrevi à minha mestra dizendo que tudo que aprendera em seu ensinamento era bom e muito tinha me ajudado espiritualmente, mas que eu amava Jesus, e tinha decidido segui-lo. Não estava negando o que recebera nem me cabia criticar o hinduísmo ou opô-lo ao cristianismo. Meu objetivo era apenas aprofundar essa relação com Jesus, mergulhando totalmente na pureza das águas que jorravam das fontes cristãs desde sua vinda ao nosso mundo. Tinha consciência que a caminhada pela espiritualidade indiana me propiciara um retorno mais maduro ao cristianismo, e reconhecia o imenso valor dos ensinamentos da meditação transmitidos por meus mestres da ioga, mas queria tomar o rumo do caminho cristão, evitando misturar ensinamentos distintos.
Tendo retornado ao catolicismo, em 1992, após uma longa caminhada pela espiritualidade oriental e uma intensa prática da meditação, estranhei inicialmente a dimensão mais externa e “social” das práticas cristãs. Verifiquei haver pouca informação dos católicos sobre o caminho monástico cristão e sobre a contemplação cristã.  Separadas da vida contemplativa, as práticas litúrgicas ou caritativas católicas me pareciam descambar para o ativismo, ficando à mercê da influência da crescente agitação do modo de vida urbano. Fiquei triste ao perceber a frequente incompreensão a respeito da necessidade do recolhimento e a ausência de interiorização e contato consigo mesmo. Tal situação vem se agravando ainda mais face ao desenvolvimento dos meios de comunicação, que criam sempre novas e múltiplas necessidades de consumo. Entrando em contato com os monges católicos e estudando a contemplação cristã, cheguei à conclusão que essas características não são próprias da vida cristã, mas decorrem da marginalização da vida mística e contemplativa, no ocidente, e das condições sociais nas quais se desenvolve o cristianismo, na atualidade.
O fato de ter percorrido o caminho espiritual da ioga, levou-me ao estudo comparativo das práticas de meditação e das praticas contemplativas cristãs. Pude assim verificar que, tanto o caminho espiritual da ioga como a vida mística cristã exigem uma interiorização da consciência, que se desliga (inicialmente, ao menos durante as práticas espirituais) da atividade externa dos sentidos e do modo de funcionamento do mundo material para voltar-se para o mundo espiritual. A opção pela vida espiritual com Deus exige um recolhimento dos sentidos e da percepção do mundo externo, como condição para uma abertura para Deus e outro tipo de escuta de si mesmo e dos outros. A idéia da abertura interior para o alto e para Deus existe, portanto, no cristianismo. Na concepção cristã, o ser humano não está separado de Deus e sim intimamente a Ele associado, sendo Ele considerado como o fundamento mesmo do nosso ser. Meu contato e estudo da contemplação cristã levaram-me a valorizar a concepção cristã do ser humano como pessoa capaz de transcendência e de abertura para o mistério de Deus como o grande Outro. Essa concepção me permitiu ir além da tendência espiritualista da ioga e perceber o risco de acentuar o retorno da consciência sobre si, fechando a pessoa em sua subjetividade.
Minha passagem pelo caminho espiritual dos mestres e monges hindus me ajudou, igualmente, a perceber a importância da clausura, mesmo achando necessário readaptá-la ao contexto da vida moderna. Com base na experiência indiana, pude valorizar a necessidade de ruptura com o mundo externo para o aprofundamento da vida espiritual, quer na forma parcial de retiros quer na forma mais radical da clausura dos mosteiros. Minha adesão à fé cristã permitiu-me manifestar o desejo de ser monja e de entrar para um mosteiro beneditino. Fiz minha experiência em 1998, no Mosteiro Nossa Senhora da Paz, em Itapecerica da Serra (São Paulo), e já havia decidido nele ingressar, quando, em janeiro de 1999, meu pai faleceu. O dia primeiro de janeiro, festa de N. Senhora Rainha da Paz ficou, contudo, para mim como o dia de minha consagração à Deus como monja beneditina e eu o celebro todos os anos. Colocando em primeiro plano a caridade, não pude abandonar minha mãe sozinha e optei por não fazer minha entrada no mosteiro.  A passagem pela ioga me ajudou também, nesse momento, a entender que o afastamento do mundo para a comunicação com Deus não se faz pelo fechamento dentro dos muros dos mosteiros.
 Essa comunicação exige um abandono de nossas construções e agitações mentais, de nossas identificações sociais, de nossas vontades e de outros apegos e propensões naturais, que possam ser um obstáculo a um encontro mais profundo com Deus. Essa compreensão me levou a aceitar o que estava acontecendo como uma expressão da vontade de Deus para minha vida, e reorientar meu impulso para a realização dessa vontade. Com isso, observei uma ampliação do espaço interior de contato com Deus, uma maior afinidade instintiva com as coisas de Deus, permitindo-me discernir o que é de Deus sem me afastar do mundo ao meu redor. Percebi, então, claramente o erro de se imaginar esse contato com Deus, dentro ou fora dos mosteiros, como uma forma de afastamento dos outros seres humanos e passei a perceber mais claramente o diálogo com Deus num espaço interior onde predomina o amor e há uma maior doação e entrega de si mesmo ao outros, podendo ocorrer tanto nos momentos de oração como no desenrolar da vida cotidiana. Para isso, no entanto, é fundamental estar conectada à vida espiritual da Igreja, de seus sacramentos e ensinamentos, pois é através da comunidade dos apóstolos e de seus sucessores, dos santos e discípulos de Cristo que a seiva de sua árvore passa para os ramos.

4. CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

Em função de minha caminhada por diferentes caminhos religiosos e meu interesse pelos santos e práticas das correntes contemplativas hindus e católicas surgiu naturalmente em meu coração um interesse particular pelo diálogo inter-religioso. Novos fatos iriam ser decisivos para minha caminhada nessa direção. Minha mãe manifestou a vontade de ter a posse de todos os bens materiais deixados por meu pai, dos quais deveria receber apenas a metade como esposa e eu a outra metade como única herdeira. Armando-se contra mim, ela recusava também qualquer ajuda, querendo viver uma vida independente que nunca tivera enquanto fora casada. Resolvi aceitar a vontade dela e tomar um novo rumo em minha vida. Surgiu, então, em 2000, a possibilidade de fazer um pós-doutorado em filosofia, no Instituto Católico de Paris, sobre o diálogo inter-religioso e a oportunidade de ir morar no Priorado das beneditinas de Vanves. Foi lá que, sentada no refeitório das irmãs, na mesa da Priora, Madre Bénigne, eu ouvi pela primeira vez uma leitura sobre o diálogo inter-religioso monástico, feita pela nossa saudosa Ir. Marie Bénédicte. De origem vietnamita e formada dentro da cultura budista, ela era profundamente engajada no diálogo monástico e foi a ela que manifestei, imediatamente após a escuta dessa leitura, o meu desejo de participar desse diálogo.
Ela me convidou, então, a participar da reunião da comissão francesa responsável pela organização de um próximo evento sobre o diálogo inter-religioso monástico, na França. É impossível descrever a minha alegria por me encontrar no meio de monges de diferentes tradições religiosas e assistir a discussão através da qual procuravam delinear a apresentação do tema da presença proposto para esse evento. Cada um dos monges  apresentava com grande clareza uma maneira distinta de tratar  a questão, em função do enfoque  de sua tradição monástica sobre a abordagem da presença. Foi interessantíssimo escutar essa polêmica, não apenas pela diversidade dos conteúdos, mas, sobretudo, pelo tom da discussão. Percebi que me encontrava rodeada de seres humanos muito especiais, que não procuravam nem dominar o outro nem impor-lhe suas idéias. Confrontavam claramente suas diferenças sobre a questão com a maior firmeza sobre a abordagem de suas tradições, porém no maior respeito da visão das demais tradições monásticas. A unidade amorosa que conseguiam transmitir no respeito das diferenças era extraordinária! Nunca antes nem depois, presenciei um melhor exemplo de reconhecimento mútuo. O meu deleite chegou ao auge quando fomos lavar juntos os pratos da nossa refeição em comum, e pude perceber o carinho com que uns procuravam servir os outros.
De volta ao Brasil, em 2002, inscrevi-me num doutorado em psicologia, de modo a poder assim me reintegrar à vida acadêmica brasileira. Minha participação na comissão européia do D.I.M., desde 2000, meu contato pessoal com os monges e o acesso aos boletins da Comissão, contendo relatos de monges da tradição de Shankara e da tradição beneditina, viabilizaram a escolha do movimento de diálogo inter-religioso monástico como campo preferencial de estudo. Decidi orientar minha pesquisa de tese para esse tema. Realizei um estudo da história do monaquismo e da organização da vida monástica, em diferentes religiões, observando uma proximidade e paralelismo no surgimento das ordens monásticas hindus e cristãs[12]. Meu projeto foi aceito, tirei o primeiro lugar entre os candidatos ao doutorado e recomecei meus estudos, em 2003, no departamento de psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Como traduzia, nessa época, os boletins do DIM para o português, tive acesso em primeira mão à pesquisa que realizaram com monges católicos do mundo inteiro a respeito de suas experiências de diálogo[13].
Como minha pesquisa era no campo da psicologia focalizei, na análise que fiz dos dez anos do boletim do DIM e desses depoimentos, a dinâmica de identidade - alteridade da consciência, no contexto do diálogo inter-religioso monástico. Introduzi uma questão polêmica ao mostrar que tanto a experiência monástica hindu como a cristã propõem-se a ultrapassar a dimensão social do eu, sem considerar que o ser se reduza a essa dimensão social. Pus em relevo a contribuição dos monges para a formação espiritual dos ocidentais, tendo em vista o ativismo, exteriorização e carência de interiorização de sua vida espiritual. Pude, assim, ressaltar que, no ocidente, predomina uma separação entre materialismo e espiritualismo, entre ciência e religião, entre subjetivo e objetivo, que vem permitindo um estudo objetivo dos fenômenos através da observação, mas vem também separando e dividindo o conhecimento em diferentes aspectos e áreas de estudo, perdendo de vista a perspectiva mais global e interior dos grandes sábios e pensadores. Ao romper com a dimensão metafísica do espírito, a filosofia e a psicologia ocidentais se restringiram, deixando de lado a ligação entre a consciência individual e uma consciência mais ampla. Desse modo, perderam o contato com as raízes mais profundas, integradas e simbólicas da consciência, desenvolvendo predominantemente a dimensão racional, objetiva e social.
Nessa tese, destaquei o fato que, embora sendo ainda recente, o diálogo monástico indica uma tendência inovadora na relação entre as religiões ocidentais e orientais que é fruto não apenas do esforço pessoal de alguns pioneiros, mas também das transformações religiosas e sociais que se aceleraram na atual etapa de mundialização. Após apresentar os fundamentos do monaquismo, tendo salientando as diferenças entre suas principais tendências e a referência a uma base comum entre os diferentes tipos de monaquismo, situei o desenvolvimento do diálogo entre monges na perspectiva da história monástica cristã, no atual contexto de pluralismo religioso e de elaboração católica sobre o tema. Salientei, então, que a importância deste tipo de diálogo para o campo de estudo da religião reside em sua ênfase na experiência, em sua associação entre diálogo e contemplação (ou meditação), e no compartilhamento de práticas monásticas por membros de diferentes tradições religiosas. Ao mesmo tempo, como as experiências relatadas pelos monges estavam enraizadas em uma vida religiosa tanto pessoal como comunitária e foram orientadas para o testemunho, elas permitiram um enfoque das representações históricas do diálogo, o que me permitiu relacionar essas representações às práticas religiosas, às experiências espirituais, e às histórias de vida dos monges e comunidades monásticas.
Após ter situado histórica e culturalmente o diálogo inter-religioso monástico, pude melhor perceber e demonstrar a originalidade do processo de diálogo proposto pelo DIM. Aprofundando-me no estudo da experiência monástica de contemplação e diálogo pude descobrir e por em relevo a contribuição de sua perspectiva de alteridade para a renovação da identidade cristã e para a atual cultura de diálogo[14]. O acesso a esta experiência foi propiciado pelo contato pessoal com o então Secretário Geral do DIM e Abade do Mosteiro Saint-André (em Ottignies, perto de Louvain-la-Neuve, na Bélgica), Pierre de Béthune. Ele me forneceu não apenas o acesso a toda sua documentação sobre o diálogo inter-religioso monástico, mas também discutiu pessoalmente comigo minhas análises dos documentos e questões surgidas na pesquisa. Tive, aliás, a oportunidade inédita de participar da vida comunitária deste mosteiro masculino, quando lá residi, num quarto especial da clausura masculina, em fevereiro de 2003, a fim de poder realizar esse trabalho de pesquisa. A utilização do enfoque histórico-cultural e do método narrativo propiciou a descoberta de um novo sentido atribuído não só à própria identidade como também à alteridade religiosa.
Pude assim acompanhar o surgimento de uma nova dinâmica de identidade-alteridade através da consolidação da relação inter-religiosa de reconhecimento mútuo e de unidade na pluralidade cultural-religiosa[15]. A tese analisou o sentido, a formação e a consolidação dessa nova dinâmica de identidade – alteridade, no contexto do diálogo entre os monges de diferentes tradições religiosas, estudando-a, entretanto, do ponto de vista da comunidade monástica católica e de sua experiência viva e histórica de diálogo e contemplação. Tornou-se possível não apenas apresentar uma interpretação do ser cristão na Babel contemporânea e apreender o seu sentido histórico na perspectiva de uma unidade plural, mas também distinguir a visão de alteridade da visão de pluralidade, traçar o processo de mudança e focalizar o desabrochar da espiritualidade cristã dialogal na caminhada conjunta para o Absoluto, e na perspectiva cristã de uma Alteridade Absoluta.
Demonstrei que o diálogo entre os monges atinge um nível de profundidade maior que os diálogos que se situam apenas no nível do discurso, pois ele se baseia na experiência espiritual, rompe com a visão de negação e exclusão da alteridade religiosa e conduz até a uma perspectiva de unidade na pluralidade religiosa e a um novo tipo de convivência e intercâmbio espiritual entre as religiões. Tendo verificado a importância central desta dinâmica e seu sentido religioso para o desenvolvimento do diálogo entre os monges, a tese destacou não apenas a dimensão psicossocial da dinâmica de construção da identidade e da alteridade, mas pôs em evidência também seu enraizamento no mais profundo centro do ser, sublinhando a relação estabelecida pelos monges católicos entre o diálogo inter-religioso e seu diálogo com Deus. A concepção cristã da alteridade de Deus e do próximo foi determinante para a formulação da prática dialogal de reconhecimento mútuo e para as experiências monásticas de paz e harmonia entre os monges de diferentes religiões.
Adotando a perspectiva desse tipo de diálogo, foi possível distinguir a dinâmica de reconhecimento mútuo nele predominante da dinâmica de auto-afirmação e recusa do outro, predominante nas experiências de negação da diferença, de guerra e eliminação da alteridade. Mostrei, então, como a predominância da dinâmica de reconhecimento mútuo foi favorecida pela ruptura social da vida monástica, pelas práticas contemplativas e pelo profundo processo de reformulação da identidade-alteridade pela qual passam os monges em sua caminhada para o Absoluto. Atualmente, o reconhecimento da identidade cristã e da alteridade religiosa está sendo considerado por estes monges como central para seu diálogo inter-religioso e está lhes permitindo rever sua relação com a própria identidade, ultrapassando, ao mesmo tempo, as representações históricas negativas sobre as outras religiões e promovendo a abertura para outros seres, culturas e religiões. A análise de todas estas mudanças foi situada no contexto da Babel contemporânea, pondo em relevo a contribuição monástica para uma unidade na diversidade de linguagens e seres, permitindo distinguir a visão de pluralidade no reconhecimento da identidade-alteridade de outras perspectivas de unidade e pluralidade baseadas apenas na identidade.
Em 2006, a Assembléia Geral dos Abades e Abadessas Beneditinos Brasileiros reconheceu a importância do trabalho do DIM e indicou um de seus membros, D. Hugo OSB, do mosteiro de Brasília, para tratar da questão e da edição da versão brasileira do boletim do DIM que foi, então, distribuído aos mosteiros da ordem, tendo sido publicado também, no site desse mosteiro beneditino de Brasília. Após uma grave doença de D. Hugo OSB, entretanto, o movimento dialogal monástico, no Brasil, ainda em sua fase embrionária, não chegou a nascer, mas as idéias desse diálogo foram acolhidas no Mosteiro N. Senhora da Paz, em Itapecerica da Serra (Estado de S. Paulo), ao qual continuo ligada, cuja Abadessa, Madre Marta Lúcia Teixeira já estabeleceu contato com o atual Secretário do DIM, William Skudlarek. Para que essas idéias germinem será necessário o surgimento de uma prática de diálogo com monges de outras tradições religiosas, porém não se manifestou ainda, no Brasil, uma convivência ou uma necessidade de diálogo que permita abrir caminho nessa direção.

5. DIÁLOGO E CONTEMPLAÇÃO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Os aspectos que mais me estimulam a prosseguir no caminho do diálogo monástico são: a necessidade de outro tipo de espiritualidade para o mundo atual, a consciência do papel dos monges na Babel contemporânea e a exigência crescente de tomar distância e rever a nossa ”maneira ocidental” de ser e pensar, reformulando as próprias características atuais do “espírito ocidental”, a espiritualidade cristã e a relação do cristianismo com a cultura ocidental e oriental.   Apesar dos progressos obtidos pelo processo de delimitação do espírito, predominante no Ocidente, o esforço racional levou a uma drástica ruptura com o imaginário, provocando o retorno atual a uma espiritualidade de tipo imaginário, empobrecida pelo predomínio anterior e exclusivo da racionalidade. A redução do espírito ocidental ao estreito círculo da consciência reflexiva assim como a tentativa de separar o objetivo do subjetivo apresentam várias vantagens para o desenvolvimento da ciência e para a superação do subjetivismo religioso. A grande desvantagem decorre, porém, da redução do psiquismo ocidental à dimensão mais racional, seguida de uma exteriorização e ativismo espiritual, que acabaram impregnando a vida religiosa cristã.
O diálogo inter-religioso monástico pode vir a contribuir para o reequilibro das tendências opostas das religiões, no Oriente e no Ocidente (a tendência para o interior e a tendência para o exterior), estimulando uma integração dessas duas inclinações da consciência, tendo em vista o caminho próprio proposto por cada uma das religiões. Para o ocidental, por exemplo, seria importante compensar sua extroversão pela revalorização das tendências e buscas espirituais contemplativas, permitindo um maior desenvolvimento da dimensão introvertida, enriquecida, eventualmente, com as pesquisas e descobertas orientais compatíveis com o projeto cristão. Daí, a importância de valorizar e divulgar o inestimável acervo do conhecimento contemplativo guardado nos mosteiros católicos. Para isso é, também, importante analisar em profundidade os enfoques orientais sobre o cristianismo, integrando suas contribuições e procurando entender as diferenças culturais entre as religiões.
Uma contribuição importante do hinduísmo para o diálogo inter-religioso atual é sua base no dharma ou lei natural e seus ideais éticos, baseados no celibato e no ascetismo, sendo o estado do samnyasa ou renunciante considerado como o coroamento e o ideal da vida humana[16]. A ética hindu implica a prática de elevadas virtudes, que integradas a uma elevada metafísica nos ensinam uma concepção de evolução espiritual e de domínio do espírito sobre a matéria. Nela, o verdadeiro progresso é medido pela evolução do espírito em direção a Deus, o que faz os hindus considerarem o ocidente como decadente, tendo invertido os valores éticos fundamentais. Essa inversão teria ocorrido ao colocarem os ocidentais os bens materiais acima dos espirituais e ao terem se entregue a uma decadência moral do próprio dharma ou lei natural. Desse modo, o ideal hindu do herói espiritual, que através da disciplina e da prática das virtudes desinteressadas alcança um estado interior de grande liberdade e amor permite não apenas uma crítica da condição ocidental atual e de sua pesquisa sobre a psique humana, mas pode também contribuir, através do diálogo inter-religioso monástico, para um retorno do catolicismo às suas raízes místicas e contemplativas, cuja tradição vem sendo preservada em nossos mosteiros.
            Em decorrência do meu próprio percurso e de minha inserção no mundo, preocupei-me em refletir sobre o diálogo e a contemplação, no contexto do mundo atual. Colocando-me na perspectiva do que aprendi no meu percurso espiritual por diferentes religiões, parece-me fundamental que a contribuição espiritual da ioga e da tradição hindu possa vir a ser integrada ao catolicismo, assim como o foi a contribuição do pensamento grego. Para isso, seria necessário fazer uma aculturação de diferentes aspectos da religião hindu, em particular de suas narrações mitológicas sobre as diferentes encarnações divinas, compreendendo que, embora elas entrem em contradição com a fé cristã sobre a divindade de Cristo, elas constituem uma maneira acessível e rica de transmitir ao povo hindu conhecimentos metafísicos e uma reflexão sobre a ética e as virtudes, numa linguagem simbólica capaz de exprimir realidades transcendentes, conduzindo esse povo à fé em uma única e suprema divindade. Sem dúvida, a pesquisa da ioga, associada ao enorme esforço de abstração da filosofia indiana, produziu uma elaborada representação do Deus Uno e do Mestre Divino, descrevendo de forma fascinante a busca humana de Deus e as batalhas interiores da alma humana para encontrá-lo.
Os grandes heróis dessa odisséia interior dominaram a própria mente, aprimorando as virtudes naturais e desenvolvendo potencialidades humanas desconhecidas e consideradas por muitos como paranormais. Ao atingirem um estado de plenitude do amor divino e de serviço desinteressado à humanidade, eles são considerados como santos da tradição hindu. Parece-me importante reconhecer o valor dessa santidade atingida na intimidade com Deus, compreendendo, no entanto, existir no caminho da tradição hindu um processo diverso da santificação daquele que ocorre através da filiação cristã. Subjacente à busca interior da ioga está a concepção da identidade do Âtman com Deus, cuja realização, segundo a ioga, consiste em se esvaziar do ego pessoal e se tornar uno com o Deus que vibra no coração de cada ser humano. Os mestres espirituais hindus se propõem a conduzir seus discípulos à união com o Ser Divino por uma alquimia interior que transforma a natureza humana em divina, na medida em que esse processo de autoconhecimento e identificação com o Ser Divino se consolida.
Sem o reconhecimento da diferença entre a perspectiva hindu e a perspectiva cristã sobre a divindade de Cristo, alguns estudiosos do hinduísmo identificam a divindade de Jesus com esse processo descrito pela ioga, que conduz à identidade do eu individual com o Ser Divino, pelo esvaziamento mental de qualquer identificação com esta ou aquela imagem ou forma particular de si mesmo. Esses estudiosos consideram, então, Jesus como um homem muito especial, que atingiu o raro e excepcional estado de perfeita e completa união com Deus, podendo conduzir outros poucos seres raros e excepcionais à realização desse estado divino. A ioga interpreta, portanto, o Reino de Deus como uma realização meramente interior, enquanto para o cristianismo o Reino de Deus refere-se sempre à soberania de Deus (introduzido na história por Jesus) e não apenas a um domínio psicológico e pessoal sobre si mesmo. Trata-se de uma soberania de Deus ou Reino de Deus, tanto dentro como fora de cada um de nós, um projeto mais global de Deus para a humanidade, que integra o interior e o exterior, o subjetivo e o objetivo numa nova ordem do mundo, numa nova criação. A perspectiva católica de distinção entre o ser humano e o Ser divino é a base de um diálogo com Deus no qual as criaturas humanas podem vir a se comunicar com o Criador e, a partir desse diálogo, transformar sua relação com os outros seres humanos e estabelecer entre si um diálogo distinto da relação de dominação e poder predominante nas relações do mundo.
Para a realização desse diálogo com Deus e com os outros seres humanos é necessário passar por um processo de conversão no qual a ascese, a interiorização da consciência e as práticas contemplativas são essenciais. Elas são valorizadas no caminho do monaquismo hindu e budista, na meditação dos que buscam um encontro com o divino seguindo o percurso da ioga e no caminho monástico católico, o que estabelece entre esses diversos caminhos contemplativos uma base comum de entendimento para o diálogo, como sublinho em minha tese. Para praticar o diálogo dos monges católicos com os monges hindus ou budistas formados na longa e variada tradição do hinduísmo, é preciso, levar em conta esses pontos em comum, mas também saber distinguir e respeitar as diferenças, sem misturar e confundir as distintas propostas religiosas.
O hinduísmo, por exemplo, não nega a divindade de Jesus e o reconhece como um mestre divino, havendo até os que O reverenciam como um Avatar ou encarnação de Deus, porém as diferentes correntes oriundas do hinduísmo tendem a interpretar Jesus a partir da representação hindu de um estado divino que seria universal, idêntico e único para todo ser humano. Além disso, a mensagem de Jesus sobre o Reino de Deus é por eles reduzida a uma libertação individual e interior, quando ela implica igualmente um processo de transformação das relações humanas, inseridas na vida comunitária e na história. A prática e estudo do diálogo inter-religioso me permitiram aprofundar essa e outras diferenças, como a abordagem da pessoa, da história e do processo da libertação, que não tenho condições de aqui desenvolver. Em função de minha caminhada espiritual, posso assim reconhecer a importância da contribuição da espiritualidade indiana sem abrir, contudo, mão da perspectiva diversa delineada nos Evangelhos e na tradição católica.
 Minha experiência me mostrou que para participarem do diálogo inter-religioso, os católicos precisam estar firmemente enraizados em sua fé na Pessoa divina de Cristo e no caráter único, inédito e sem precedentes da proclamação de Jesus sobre o Reino de Deus como uma irrupção no presente de um estado transfigurado do mundo. A experiência da relação com Cristo nos concede a graça de ter acesso a um processo de divinização que ocorre naturalmente e pode ser vivenciado até pelas crianças, como mostro neste meu testemunho, pois ele ocorre por uma iniciativa de Deus. Compartilhando a fé católica, compreendi que esse processo ocorre a partir do envio de uma mensagem de amor de Deus à humanidade através de seu Filho, que abre seus braços e estende sua mão a todos os seres humanos. Após meu regresso ao catolicismo, tomei consciência de que com a vinda de Jesus entre os homens, o Reino de Deus já está inserido na história humana, e pude vislumbrar o horizonte de uma renovação espiritual e corporal dos seres humanos, percebendo que ela está em curso na vida daqueles que estabeleceram essa nova relação com Deus através de Cristo, mesmo que a transformação da vida do mundo não tenha ainda sido realizada segundo do projeto da nova criação por Deus. Quem sabe Ele não está esperando que participemos nesse processo, melhorando o nível da relação entre os seres humanos? Nesse sentido, pode-se dizer que o percurso que nos conduz ao reconhecimento mútuo e amoroso através do diálogo corresponde ao apelo do projeto de Deus.
A divulgação sem precedentes do símbolo do monge parece ir nessa direção como venho procurando assinalar em vários textos sobre papel dos monges na Babel Contemporânea[17]. Antes mesmo de entrar em contato com os monges ou de conhecer meu mestre de meditação, quando meu processo de psicoterapia atingiu as camadas mais profundas da consciência e atravessou a área das sombras, meus sonhos foram povoados por estas figuras. Personagens de monges e sábios aparecem também em vários contos e lendas, desempenhando um papel central na formação dos heróis e em suas batalhas e vitórias espirituais. Este símbolo vem sendo mantido vivo na memória coletiva pela transmissão oral da experiência de diferentes tradições, em particular monásticas, que são depositárias do manancial da vivência humana a este respeito. Recentemente, esses personagens vêm surgindo com grande força também em diferentes tipos de filmes e livros. Emergindo do fundo da consciência com novas ou antigas roupagens, o símbolo do monge ou do sábio vem assim ganhando os meios de comunicação e o grande público.  Considero que esse novo impulso na difusão do símbolo do monge manifesta uma renovação não apenas do monaquismo, mas também da busca dos valores espirituais e do estado de paz e harmonia, que os monges relacionam com a vida espiritual e a intimidade com Deus e que o profeta Isaias anunciou como projeto de Deus para a humanidade.
Esse renascimento pode surpreender, no Ocidente, na medida em que brota das cinzas da destruição e decadência de muitas instituições monásticas e religiosas cristãs, no período histórico no qual ocorreu o predomínio do materialismo e do secularismo. Quando se acreditava, porém, no Ocidente, que a religião desapareceria com o progresso, e a vida monástica estava ultrapassada, não tendo mais sentido para a modernidade ocidental, eis que a necessidade espiritual e religiosa retorna com mais vigor e ressurge o interesse pela vida monástica, na chamada pós-modernidade globalizada. Parece-me, aliás, que o atual diálogo inter-religioso monástico está reativando e renovando o manancial da longa e variada tradição monástica das várias religiões. Daí a importância de se tentar compreender e situar as condições de vida dos monges e o diálogo inter-religioso monástico, no contexto histórico atual e em relação com o processo de mundialização. É neste novo contexto que o símbolo do monge e o papel deste se destacam, em particular junto aos jovens, como se pode verificar ao estudar a experiência da comunidade de Taizé, que é um exemplo desse papel dos monges na Torre de Babel da pós-modernidade.
Refletindo a esse respeito compreendi que o papel fundamental da comunidade monástica, no contexto dessa enorme Babel do mundo globalizado, é o de abrir o horizonte de um mundo alternativo possível e de uma unidade na diversidade de línguas. A comunidade monástica manifesta, na forma de um modo de vida diverso da ordem do mundo, o horizonte escatológico cristão da ordem do Reino de Deus. As comunidades monásticas encarnam a utopia, que é partilhada por muitos jovens, de um mundo harmonioso e sem conflito, onde cada um pode ser levado – como no canto a várias vozes entoado pelos monges - a representar sua própria parte, participando da unidade do todo. O diálogo inter - religioso monástico me parece corresponder às necessidades de nossa época, nos quais as pessoas estão cada vez mais dispersas e submersas numa multiplicação de línguas e sons. Assim sendo, considero que o testemunho dos monges, em particular dos participantes do diálogo inter-religioso monástico, pode contribuir para as transformações atuais do mundo, na medida em que sua caminhada espiritual ajuda a lançar luzes sobre novas maneiras de ser e de se relacionar, revelando uma visão espiritual de unidade e alteridade na pluralidade de vozes, em estreita relação com a realização do Reino de Deus.
Qualquer que seja o modo de organização adotado pelo monaquismo, nos diferentes contextos culturais e religiosos, aparece sempre essa forma radical de relação com Deus ligada à proposta de uma transformação humana para além dos parâmetros sociais vigentes, numa espécie de posição de contraponto à ordem do mundo. Os mosteiros apresentam-se como um ambiente favorável para o diálogo com Deus, para um diálogo mais profundo entre os seres humanos de diferentes religiões e para uma convivência amorosa e pacífica entre os seres humanos, desempenhando um papel fundamental no contexto atual de predominância e generalização das relações mercantis. E também possível, como mostro em meu testemunho, realizar uma caminhada nessa direção vivendo no mundo, sobretudo quando se mantém a ligação com uma comunidade monástica. De qualquer forma, os monges acabam, portanto, tendo uma função fundamental em nossa época: a de apontar para a transcendência espiritual e a ascensão para Deus, tendo em vista não a construção de uma torre humana, mas a resposta a um projeto de Deus que se manifesta na história e na vida pessoal daqueles que procuram escutar sua Voz.

Olga Sodré trabalha atualmente como psicóloga clínica e psicóloga social (CRP - 5/6371), é doutora em filosofia (Paris - Sorbonne), com tese sobre a filosofia indiana, e doutora em psicologia clínica, pela PUC-Rio, com tese sobre o diálogo inter-religioso monástico. Tem um pós-doutorado em filosofia (Instituto Católico de Paris), um pós-doutorado, no Instituto de Medicina Social da UERJ, e integra o Grupo de Trabalho  Psicologia e Religião da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia).


[1] Parece-me que no primeiro caso, a cultura religiosa cristã está ainda presente na construção mental e na formação cultural mais profunda dessas pessoas, mesmo quando posteriormente elas adotam uma postura materialista, enquanto que, no segundo tipo de materialismo, parece ter havido uma espécie de descristianização.
[2] SODRÉ, O. (1985) La Nature humaine et L’Énergie Consciente, Paris - Sorbonne, tese de doutorado em filosofia ; SODRÉ, O. (1989) CIDVILASA, o Jogo da Energia Divina – Teoria e Experiência do Eu: O Ator a Fantasia e seus Personagens, Rio de Janeiro, PUC - Rio, tese de mestrado em psicologia clínica.
[3] Trata-se de uma teoria apresentada nos textos clássicos da corrente filosófica e mística que ficou conhecida como o Xivaismo da Caxemira, e se desenvolveu nesta região do norte da Índia entre os séculos IX e XII, e cuja tradição oral remonta ao século V a.C.
[4] Através da concepção da fantasia (Maya), critica-se a dimensão ilusória do desejo de objetos, na medida em que este escraviza o impulso humano e leva as pessoas a uma busca incessante e infrutífera de satisfação através da aquisição de objetos. O desejo torna-se, então, uma fonte de sofrimento e aprisionamento do ser humano, que não tem um contato com a fonte divina de onde brota o impulso da vida. É por esta razão que a ioga procura libertar o impulso dos apegos, e ensina a ultrapassar o desejo dos objetos (raga). A liberação espiritual é, então, associada à eliminação dos desejos. Reconhece-se, no entanto, a importância fundamental do desejo de liberação (mummuktaswa), que corresponde a um desejo de aceder ao divino e a um estado de consciência no qual o ser humano torna-se livre e recobra toda sua força e capacidade de criação.  Alerta-se, portanto, para o perigo do poder imaginário de Maya em função de sua capacidade de encobrir, enganar e aprisionar a mente.
[5] Segundo o Xivaismo da Caxemira, no nível humano, o a consciência é obscurecida pelo poder de ilusão (Maya), que é a base de construção do eu imaginário (ahamkara) e da identificação com as diferentes significações, pensamentos, emoções, impulsos e sentimentos. Esta filosofia explica como o poder de ilusão (Maya) produz as diferentes formas imaginárias que nos enredam, criando a experiência ilusória do mundo através do funcionamento do psiquismo e da linguagem, ensinando como se libertar desse tipo de desejo e chegar pela meditação a um estado de repouso no ser, de grande liberdade, satisfação e criatividade, no qual se manifesta o desejo de Deus.
[6] Edmond Flegenheimer, conhecido como Edmond Fleg, (1874 - 1963) foi um intelectual e judeu francês, nascido em uma família assimilada, que sob o impacto do caso Dreyfus se reaproxima do judaísmo, tendo sido um dos fundadores, em 1948, da Amizade Judaico-Cristã da França e autor de um livro sobre Jesus: Jésus raconté par le Juif errant, Paris: Albin Michel, 2000.
[7] Lendo o Evangelho de Mateus (Mt 17,1-8) , na Bíblia de Jerusalém.
[8] Brahmacharya significa literalmente: caminho para Brahma ou caminho de ascensão da energia, situado ao longo da coluna vertebral.
[9] Essa união representa uma integração do impulso desde a raiz até o ápice da coluna vertebral, numa integração de todo caminho de evolução psicológica humana desde a base do instinto até a sua coordenação superior e racional, situada no alto da cabeça.
[10] Eles enaltecem a sexualidade e a consideram sagrada, considerando os ocidentais decadentes pelos usos e abusos que fazem da sexualidade.
[11] Já nessa época, não achava correto traduzir e interpretar realidades distintas em função dos significados e pontos de vista de outro enfoque, numa busca de unidade que anula as diferenças.
[12] S. Bento, o fundador do monaquismo comunitário cristão viveu no século V/ VI e o organizador do monaquismo hindu, Shankara no século VIII/ IX d. C.
[13] Esses testemunhos foram preparados para as celebrações dos 25 anos de atividades do DIM / MID, que foram comemoradas, em 2003.

[14] O levantamento e análise dos testemunhos sobre o percurso do diálogo até o reconhecimento da alteridade e renovação da identidade cristã basearam-se não só nas entrevistas para a celebração dos 25º ano do DIM, mas também nos textos publicados, durante os dez anos de existência dos boletins do DIM. Esse estudo foi feito através de uma metodologia histórico-narrativa de análise e interpretação dos testemunhos desses monges, focalizando o relato das transformações pessoais e comunitárias que levaram ao desenvolvimento de uma nova postura dialogal.
[15] Em meu pós-doutorado no Instituto de Medicina Social da UERJ (2006-2007) desenvolvi este enfoque, relacionando a questão da linguagem, do símbolo e do mito com o processo histórico-cultural em jogo na sucessão das gerações. Focalizei também a dinâmica de identidade-alteridade dos jovens no desenrolar dos conflitos familiares, ressaltando o estreito entrelaçamento entre o desenvolvimento psicológico e a elaboração dos valores e sentidos fornecidos pela cultura e pela vida social. Delineei um percurso de transformação deste conflito até chegar ao reconhecimento mútuo e à abertura do espaço pessoal, familiar e público. Procurando resgatar a contribuição do mito para a restauração da plenitude do sentido da linguagem, no mundo contemporâneo, aprofundei a linguagem simbólica através da qual ele exprime o conflito entre pais e filhos, com base no mito grego da revolta dos Titãs, realçando o entrelaçamento da história pessoal e social com a linguagem, em particular com o símbolo e o mito.
[16] A síntese dessa concepção encontra-se no Mahabharata, considerado justamente como o quinto Veda. Nele, encontra-se a súmula dos ensinamentos filosóficos e éticos dos Upanishads (a parte filosófica dos Vedas), magistralmente sintetizados na Bhagavad Gita. Esse grande poema épico descreve a luta entre o bem (representado por Krishna) e o mal (representado pelo demônio Duryodhana). O herói, Arjuna, encarna, nesse poema, o discípulo ideal que, após ser instruído pelo mestre, torna-se como ele, igualmente, um homem de ação e contemplação.
[17] Entre eles o texto feito para a revista do mosteiro de S. Bento, no Rio de Janeiro: Olga Sodré, Monges em Diálogo a Caminho do Absoluto (In Coletânea – Revista de Filosofia e Teologia da Faculdade de S. Bento do Rio de Janeiro, Ano V - fascículo 9,  setembro de 2006, pp.18-44).


Postado por Carmo Freitas, Ir. Paulo, nov.obl.OSB

Mosteiro Nossa Senhora da Paz

Mosteiro Nossa Senhora da Paz
As Monjas do Mosteiro Nossa Senhora da Paz são herdeiras de uma grande tradição. Como os Apóstolos conviviam com o Senhor, assim as monjas vivem para ele, que as faz participar de sua vida divina!

Vida Monástica

Vivendo em comunidade o mistério da vocação cristã que as torna filhas de Deus e Irmãs em Cristo, as monjas têm um profundo relacionamento fraterno. Cada irmã tem a sua função própria e põe em comunhão seus talentos, habilidades e esperanças, a serviço de todas, na alegria de doação.
Juntas rezam, juntas trabalham, juntas estudam e se creiam. A comunidade não é apenas um meio humano para o crescimento das irmãs, mas possibilita comungar da vida de Deus, de quem ela assgura, a seu modo, a presença e a ação.

Postado por Fatima Freitas