Parabéns!
São Paulo, 12 de janeiro de 2011.
Prezados Senhores Editores:
Ao tempo que os felicito pela primorosa reedição das obras do renomadíssimo professor Luiz Antonio Sacconi, apresento-me: sou Gustavo Vieira de Araújo, graduado em Letras pela Universidade de São Paulo (Língua Portuguesa e Língua Latina).
Em razão do ingente apreço que tenho do abalizado trabalho de Sacconi, seria indesculpável deixar de submeter à apreciação do autor e de Vossas Senhorias algumas sugestões atinentes a certos verbetes do Grande Sacconi – Dicionário da Língua Portuguesa.
Adianto-lhes, todavia, que não se trata de assuntos propriamente gramaticais ou linguísticos, uma vez que para eles reservo momento oportuno, se o tempo e a inteligência mo concederem. Esses, a despeito de minha singela contribuição, serão certamente corrigidos nas edições vindouras.
Especificamente, os temas de que tratarei encontram-se jungidos à Teologia, ciência a que há tempos me dedico em razão das traduções que outrora realizei da Vulgata.
No decorrer das explanações apontarei as referências bibliográficas em que me baseio, sobretudo quando se nos apresente controvertida a tese; todavia, caso esta não seja satisfatoriamente convincente, não deixarei de fornecer-lhes, a tempo, dados que contribuam para a eliminação das dúvidas.
Os verbetes, vejamo-los:
Jesus Cristo
Uma vez que neste verbete está o principal busílis, pu-lo antes dos demais, de forma que o dissecasse cuidadosamente.
Em tempo: As apreciações são imparciais, sem viés religioso, pois que se fundamentam apenas nos registros da Sagrada Escritura e nos textos críticos – igualmente imparciais – a ela atinentes.
“O nome Jesus é grego e corresponde ao hebreu Josué (Salvador).”
Correto, em parte. O nome do filho de Maria, antes de ficar à feição da koine do Novo Testamento, vem do hebraico Yehoshú’a (Javé é, ou dá a Salvação). A relação com o nome Josué é corretíssima. V. O Jesus histórico, de Gerd Theissen e Annette Merz; Conhecer Jesus, de José de Anchieta Lima Costa; Vocabulário de pastoral catequética, de Ralfy Mendes de Oliveira; Bíblia de Jerusalém; Tradução ecumênica da Bíblia; Bíblia do peregrino; Minidicionário bíblico, de David Conrado Sabbag.
“Os fatos a ele atribuídos foram então questionados, e um pequeno grupo não reconhecia a autenticidade do seu histórico.”
Durante o curso do cristianismo, é fato, vários foram os grupos que fomentaram questionamentos a respeito da autenticidade do Jesus histórico (ou do que se costuma chamar de “Acontecimento-Jesus”), a par de outras tantas questões inerentes ao seu magistério. Ora, nem a própria Sagrada Escritura, em seu aspecto geral, deixou de ser submetida ao abalroamento da crítica.
Eis a pergunta: a passagem acima refere-se à crítica racionalista de Renan (autor de Vie de Jesus), Harnack, Streeter, Hort, Westcott et alii? Caso seja, há razão na afirmação do douto professor, mas não seria dispendioso acrescentar que estes se dobraram à autenticidade histórica dos quatro documentos introdutórios do Novo Testamento, consoante assegura farto material bibliográfico (v. Jesus Cristo é Deus?, de José Antonio de Laburu; Escola da Fé, de Felipe Aquino).
“... fatos maravilhosos cercaram o nascimento de Jesus (p. ex.: a anunciação a Maria pelo Espírito Santo).”
Passagem imprecisa. À luz da fé, muitos fatos maravilhosos com efeito ocorreram, porém a anunciação se deu por meio do anjo Gabriel, que informou Maria a respeito da concepção que seria realizada por ação do Espírito Santo, a chamada “encarnação do Verbo” (Lc 1, 26-38).
“... a crescente corrupção do governo romano liderado por Herodes.”
Sim, havia improbidade na administração de Herodes Magno (convém especificá-lo), bem como subserviência constrangedora deste ao domínio romano... Ocorre que a expressão “governo romano liderado por” pode ensejar interpretação equivocada do ledor avesso às injunções históricas.
Por experiência própria, afirmo que não é raro encontrar quem, iludido pela conturbada política daquela faixa de terra, imagine ser Herodes um político romano à frente da administração da Palestina. Equívoco comuníssimo.
A propósito, gozando apenas de independência nominal, a Palestina à época não era província romana, até porque estava a Judeia sob o reinado de Herodes, idumeu nomeado e protegido pelo Senado romano. V. Bíblia do peregrino, traduzida e comentada por Luís Alonso Schökel.
A descendência dos Macabeus fora eliminada em favor de uma administração lacaia, convenientemente submissa ao império romano, o que provocava a aversão profunda dos judeus à autoridade alienígena.
“... sendo seguido por um pequeno grupo de discípulos (ou apóstolos).”
Apóstolo e discípulo não possuem rigorosamente o mesmo sentido. Este pode ser usado em lugar daquele, mas aquele não pode ser usado em lugar deste. Expliquemos:
Os apóstolos eram com efeito em pequeno número (doze discípulos especiais, conforme os Evangelhos; treze, se nos estendermos à figura de Paulo de Tarso), todavia os discípulos comuns eram muitíssimos, homens e mulheres (Lc 8, 1-3).
Conhecida é a passagem na qual Jesus oferece missão a setenta e dois deles (Lc 10, 1). Ainda que os números em geral estejam revestidos de simbologia nos escritos bíblicos, é bom discriminar as duas espécies de seguidores.
A missão dos doze apóstolos está em Mt 10, 5-15; Mc 6, 7-13 e Lc 9, 6.
“Depois da cena da expulsão dos vendilhões do templo, um grupo ligado ao governo decidiu eliminar aquele homem, já visto como líder revolucionário e violento reformador.”
Antes do evento chamado “purificação do Templo” (Mt 21, 12-17; Mc 11, 15-19; Lc 19, 45-48; Jo 2, 13-22), Jesus já se encontrava, havia muito, em rota de colisão com o alto clero e com os interesses políticos: era um reformador perigoso, dado seu carisma.
O conflito supracitado só exacerbou as rixas já existentes, as quais, a bem da verdade, nasceram de um evento descrito no Evangelho de Lucas. No realizar um comentário na sinagoga de Nazaré, Jesus atribuiu o sentido de uma profecia de Isaías à sua pessoa. Resultado do atrevimento: conduziram-no ao cimo de uma colina a fim de matá-lo (v. Lc 4, 28).
Ademais, as expressões “líder revolucionário” e “violento reformador” só lhe podem ser conferidas com muitas reservas, porquanto podem aludir a uma conduta de contestação à maneira dos sicários, homens de punhal e assassinato.
Essa manifestação de viés belicoso, de insurreição armada, era uma rotina levada a cabo pelos zelotas. A propósito, Barrabás era um deles, conforme afirma a obra Jesus e as estruturas de seu tempo, de Émile Morin.
Por fim, o conteúdo programático de Jesus era avesso ao uso da violência. Dizia Ele: “Deixo-vos a paz, minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá” (Jo 14, 27). Este é só um exemplo dentre muitos.
“Sua alegação de que era o Messias e o Filho de Deus convenceu as autoridades da época de que aquilo era uma blasfêmia ridícula.”
Em Marcos, o tema do messianismo de Jesus leva o nome de “segredo messiânico”. O filho de Maria não atribuía abertamente a si o título de messias; fazia-o reservadamente (v. Mc 8, 30; 9, 9), em meio ao diminuto grupo dos apóstolos, posto que se apercebera da visão reducionista dos grupos religiosos de então. Estes, exaustos da dominação romana, não se encontravam preparados para a pacificação das relações sociais e religiosas sob a liderança de um messias desapercebido de armas e violência.
Jesus era messias alternativo, baseado na espiritualidade do servo de Javé. A declaração messiânica, Cristo a faz no curso do processo religioso do Sinédrio, assumindo a natureza de sua missão (v. Lc 26, 64).
Cumpre esclarecer que ele preferia o título “Filho do Homem”, assaz misterioso. Quanto a “profeta”, ele o reivindicou de forma velada. (O espírito da profecia, cumpre salientar, estava extinto desde Malaquias, sendo reacendido na Igreja primitiva, após o Pentecostes.)
Adendo importante: O messianismo do filho de Maria, quem o confirma é Pedro (v. Mt 16, 16), o que levou Jesus a declará-lo, na mesma ocasião, pedra angular de Sua Igreja (Mt 16, 17).
V. Para que Jesus morreu na cruz?, de Klaus Berger; Meu Senhor e meu Deus, de Isac Isaías Valle; Jesus de Nazaré, de Joseph Ratzinger; Jesus de Nazaré, de Günther Bornkamm; Bíblia de Jerusalém; Bíblia do Peregrino; Tradução ecumênica da Bíblia.
“... foi inumado e esquecido de todos, exceto de sua mãe, Maria, e de alguns amigos.”
Não há erro rigoroso aqui, senão algumas imprecisões.
Além do apóstolo João, estavam ao pé da cruz Maria, mãe de Jesus, bem como sua irmã Maria (mulher de Cléofas e mãe de Tiago, o Menor, e Judas) e Maria Madalena. Acaso os amigos a que se refere o verbete seriam os discípulos José de Arimateia, membro do Sinédrio, e Nicodemos?
À exceção das pessoas supracitadas, não havia outros amigos ou companheiros dele por ocasião dos eventos que se sucederam à morte hedionda, sobretudo porque temiam o alastramento da perseguição aos seguidores da seita perniciosa.
Importa ressaltar que, à luz dos Evangelhos, uma pessoa foi extraordinariamente presente nos eventos posteriores à morte de Jesus (o que lhe rendeu certos comentários especulativos, se não licenciosos, por parte de autores modernos), a saber: Maria Madalena. Não convém pô-la à margem do ocorrido.
“... algumas das mulheres que visitaram sua sepultura encontraram-na aberta (...). Um anjo lhes revelou, então, que ele tinha ressuscitado, subido aos céus, para sentar-se à direita de Deus.”
Convém que eu faça um adendo e explicite uma séria irregularidade.
Os episódios que antecederam a descoberta do túmulo vazio (ou do ressuscitamento de Jesus) são “contraditórios” conforme o Evangelho que os descreva. Mais precisamente, são fontes diferentes para o mesmo acontecimento, narradas consoante a necessidade catequética do hagiógrafo.
As mulheres são Maria Madalena (veja-se como é assídua), Maria (irmã da mãe de Jesus) e Salomé (mãe dos filhos de Zebedeu).
O anjo é uma personagem reincidente na descrição dos evangelistas, mas não participa de eventos propriamente fixos. A passagem no verbete poderia ser, a meu ver, mais bem ilustrada com a citação da existência das variantes a que me refiro.
A IRREGULARIDADE É ESTA: o anjo não disse o que está consignado no verbete. Ele confirma a ressurreição de Jesus e recomenda às mulheres que informem aos discípulos o lugar em que o Senhor voltaria a vê-los: a Galileia (v. Mt 28, 5; Mc 16, 6; Lc 24, 6). O relato de João é sui generis, mas tampouco confirma o que assevera o verbete (v. Jo 20, 1-18).
“Benjamin Brenner (...) assegurou que Jesus teria morrido vítima de um coágulo sanguíneo, e não em consequência de sua crucificação. O coágulo teria chegado a um pulmão. Sabe-se que Jesus, descendente de uma família judia de Nazaré, na Galileia, Norte de Israel, sofreria – como outras pessoas dessa origem nessa região – de trombofilia (...). Segundo o mesmo médico, embora Jesus tenha sofrido antes da cruscificação, a perda de sangue pelas feridas que sofreu não teria sido suficiente para provocar a morte. (...) Em 1986, a revista da Associação Médica dos Estados Unidos também mencionou a possibilidade de a morte de Jesus ter sido conseqüência de uma trombose.”
As hipóteses a respeito da morte de Jesus são inúmeras, e este é assunto que jamais se esgotará, conquanto não existam elementos científicos capazes de a determinar.
A par do pensamento de Brenner, há uma porção de especulações. Dentre as mais aceitas, se não a mais difundida, há a da asfixia. O fato de existir propensão de trombofilia na região não é argumento seguro, tampouco suficiente, para determinar uma morte que envolvia tantos fatores. Morria-se de tudo nessa época, na causticidade severa dessa terra; e até hoje de tudo se pode morrer, sobretudo a pedradas de pessoas que se declaram acossadas pela política israelense.
Em face de hipóteses tão divergentes – às quais se juntarão outras, certamente – não me parece conveniente restringir a causa mortis.
Jesus morreu bem antes dos ladrões que o ladeavam no Gólgota, tanto que lhe não precisaram quebrar as pernas (expediente assaz cruel por meio do qual era acelerada a morte do condenado). A paixão de Jesus, em face do que ele representava para a oligarquia política e clerical, com certeza excedeu os castigos corporais infligidos aos malfeitores comuns. A profecia de Isaías (52, 13) sustenta que o Servo não teria sequer feição humana e que as nações e os reis ficariam em estado de estupefação e silêncio.
Enfim, como bem percebem, é assunto que singra ao sabor da maré...
“Na teologia ortodoxa, Jesus é Deus feito homem...”
Entendo o que o professor Sacconi quer dizer no usar o adjetivo “ortodoxa”, e com ele concordo, caso esteja se referindo a uma teologia “de caráter rigoroso e tradicional”. Ocorre que o termo pode ser mal interpretado pelos que são faltos de vocabulário. A deparar-se com tal frase, há quem possa considerar que só a Igreja Ortodoxa, a instituição religiosa do Oriente, tenha essa linha de pensamento.
Minha experiência no discutir tal assunto sustenta o que ora digo. Ah, como sustenta!
“O primeiro [fato] é que Jesus (...) não deixou absolutamente nada escrito. O segundo é que não se sabe nada da vida de Jesus entre os 13 e os 33 anos de idade. O terceiro é que nada se falou ou se escreveu sobre ele durante os dois séculos seguintes ao de Sua morte. Parece que alguém recordava as doutrinas que esse homem pregava, repetindo-as e explicando-as a uma segunda e a um terceiro. Assim, as suas palavras foram passando de geração em geração, afirma Tolstoi. Admitindo-se que isso seja realmente seja verdadeiro e que só se escreveu realmente sobre Jesus duzentos anos após sua morte, podemos imaginar quantas deformações os seus pensamentos e suas idéias sofreram...”
A descoberta providencial dos manuscritos do mar Morto em 1947 (note-se bem a data) motivou novos e mais profundos estudos da Sagrada Escritura, a ponto de desmistificar antigas fantasias e incongruências da crítica clássica.
Ora, o ilustre escritor russo morreu bem antes de o tema ganhar fôlego científico nos círculos acadêmicos.
Há equívoco histórico tremendo na afirmação de que “nada se falou ou se escreveu sobre ele [sic] durante os dois séculos seguintes ao de Sua [sic] morte”.
Eis o que sustenta a crítica moderna: a fixação, ou a compilação, dos livros do Novo Testamento é que foi ocorrendo no decorrer dos primeiros séculos. As divergências de opinião a respeito da inspiração divina e o cuidado na escolha é que provocaram a demora da definição destes.
Há, pois, diferença entre feitura e escolha.
Ocorre que os textos paulinos (ou os que foram feitos sob pseudonímia) e as epístolas apostólicas (a de Tiago, a de Judas, as de Pedro, as de João, os Atos dos Apóstolos e o Apocalipse) viam-se a par de outros tantos escritos, num amálgama de doutrinas díspares. A Igreja procurou, então, selecionar esses textos a fim de expurgar o que fosse avesso à doutrina. Eliminaram-se os apócrifos, os quais, apesar de piedosos, eram fruto da imaginação transbordante de seus autores.
Notem-se as datações: 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Coríntios, Filipenses, Gálatas e Romanos (entre os anos cinquentas e sessentas); Colossenses, Efésios e Filêmon (de 61 a 63); 1 e 2 Timóteo e Tito (de 63 a 67); Hebreus (antes de 70); Marcos (entre 65 e 80), Mateus (entre 80 e 90), Lucas (aproximadamente 80) e João (entre 90 e 100).
A definição dos livros canônicos é que ocorreu séculos depois, durante o Concílio de Trento (1546), mais de cem anos depois de, no Concílio de Florença, ser esboçado o chamado “cânon longo”.
É sabido que, antes de os originais dos Evangelhos serem redigidos, havia um documento chamado Quelle (= fonte). Nele não vinham expostos os episódios da vida de Jesus, e sim suas palavras, suas sentenças, seus ensinamentos. É inegável, a crítica abalizada o afirma, que os textos primitivos nele se baseiam, o que justifica a uniformidade dos discursos de Jesus nos quatro Evangelhos. V. Bíblia – Palavra de Deus e Chave para a Bíblia, cujos autores já foram citados.
Ora, Sócrates também nada deixou escrito, mas em qualquer estudante primário de filosofia ou letras causam arrepios os questionamentos à autenticidade dos diálogos de Platão... E que dizer de Homero?...
A encher as prateleiras de qualquer bom sebo ou especializada livraria, encontram-se inúmeros escritos a respeito de Jesus, lavrados desde o século II pelos homens integrantes da Igreja primitiva. Falo da apologética, falo do período patrístico: Justino (100), Clemente de Alexandria (150), Tertuliano (160), Orígenes (185) e outros.
Para não só nos fixarmos em documentos de natureza exclusivamente cristã, podemos citar inúmeros autores e obras que se referiram ao Jesus histórico, pouco depois de sua morte, a saber: Plínio, o Jovem, Tácito, Suetônio, Flávio Josefo, o Talmud...
Negá-los é uma incongruência histórica, bem como omiti-los é sinal evidente de desconhecimento de literatura universal. Logo se vê que a fonte de que se valeu o digno professor está equivocada, merecendo imediata reconsideração.
Um breve parecer calcado em análise exegética: Como fugia ao propósito da catequese dos primeiros cristãos, o que ocorreu com Jesus dos 13 aos 33 anos (se é que a faixa etária está correta) é puramente periférico e não atendia as necessidades de instrução dos que aderiam à nova fé. Os textos neotestamentários só querem versar a respeito do aspecto teológico de Jesus, não se atendo à bibliografia do Cristo. O gênero biográfico não era efetivamente algo com que se preocupassem os hagiógrafos (isso seria assunto para algum Ruy Castro hebreu...). A propósito, existe um hiato relativo a esse espaço de tempo nos quarto Evangelhos, o que sustenta a desimportância do período no que tange à matéria doutrinal, reforçando-se a hipótese de que, naquele instante preciso, Jesus progredia no autoconhecimento e na percepção dos valores de sua tarefa.
Documentalmente, que temos da época? Temos apenas esta preciosa e (para muitos) suficiente resposta: “E o menino crescia, tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele” (Lc 2, 40).
V. O Jesus histórico, de Gerd Theissen e Annette Merz; Jesus de Nazaré, de Günther Bornkamm; Jesus Cristo segundo os Evangelhos, de Louis-Claude Fillion; Bíblia – Palavra de Deus, de Valerio Mannucci; Chave para ler a Bíblia, de Wilfrid J. Harrington; Guia para ler a Bíblia, composto de artigos de vários autores; Bíblia de Jerusalém; Bíblia do peregrino; Tradução ecumênica da Bíblia.
A respeito das comunidades primitivas, cumpre verificar História da Igreja, de Pierre Pierrard.
“Segundo o grande romancista russo, não há nada que prove ou testemunhe os milagres e muita coisa atribuída a Jesus é mera ficção.”
Conquanto fosse extraordinário escritor (reconheço-lhe o talento) e tivesse filosofado a respeito do assunto, Tolstoi não é autor de referência para a Cristologia.
É sabido que “se convertera”, todavia seus pareceres a respeito de Cristo são muitíssimo particulares. Desconheço disciplina cristológica que o adote; não o vemos nas referências bibliográficas, tampouco em notas ligeiras em obras complexas e imparciais. Além disso, sua concepção pessoalíssima do que poderia ser o cristianismo é contrária ao princípio do vínculo exercido nas comunidades eclesiais primitivas, haja vista que o autor russo era avesso às instituições religiosas. Isso lhe valeu, bem sabemos, a excomunhão da Igreja Ortodoxa em 1901.
A celebração litúrgica era, e é, evento inerente ao ideário cristão e prática a que todos se viam, e se veem, obrigados, conforme os testemunhos de autores da Igreja primitiva, antes que lhe atribuíssem o nome de “católica romana”, “ortodoxa”, “anglicana”, “batista”, “metodista”, “adventista”, etc. O protestantismo, mesmo a contestar a administração e a autonomia do catolicismo romano, preservou de modo notável algumas práticas, dentre as quais se encontra a da assembléia organizada em torno de um pastor.
Como se vê, a despeito da instituição religiosa que se professe, o sitz im lebem dos textos sagrados é sempre o mesmo: a comunidade. Paulo de Tarso, eminente defensor dessa causa, asseverava que a fé surge pela pregação (Rm 10, 17).
Uma divagação pertinente: O exercício das reuniões periódicas dos fiéis, baseadas todas elas em ritos ou práticas comuns, é o instrumento que assegurou e sustenta, até hoje, a existência das três maiores denominações religiosas monoteístas. Esse costume lhes dá uniformidade doutrinal, oferece-lhes uma disciplina moral específica. E ainda que pudéssemos acoimar o dogmatismo religioso de “limitador da liberdade humana”, essa disciplina comunitária não deixa de refletir o aspecto mais primitivo dessas religiões.
Para terminar: Caso o querido professor Sacconi deseje manter Leo Tolstoi como referência no verbete, isso é decisão que lhe assiste, porém temerária, contra a qual se podem insurgir outras críticas mais abalizadas que a minha.
Sobre o valor apologético dos milagres de Jesus, leia-se A cura dos doentes na Bíblia, de Calisto Vendrame.
“Deus está presente em todas as coisa – dizia.”
Depois de exaustivamente consultar o texto latino da Vulgata e algumas traduções, não tive êxito na localização da passagem acima, seja nos Evangelhos, seja nos demais livros componentes do Novo Testamento.
Se os dizeres são de algum autor cristão (alguns me veem à mente), é necessário definir o documento e avaliar o contexto da obra.
Enfim, de modo que seja dirimida toda a dúvida a respeito do tema, peço que ao fim da oração seja feita referência ao texto bíblico específico de que foi extraída.
“Entre as noções mais claras de Jesus é a totalidade do Universo, sempre visto como um todo, aquilo que Jesus chamava PAI ou DEUS, a Quem se deve muito respeito. Segundo se depreende das palavras de Jesus, a Natureza e o Universo compõem um todo, com suas normas e regras a que devemos obediência.”
A passagem em tela parece resultar da doutrina panteísta, a qual sugere que a divindade seja imanente ao universo, presente em todos os elementos concretos que nos circundam. A propósito, diz-se que o termo “panteísmo” foi cunhado pelo filósofo John Toland, em 1705.
Com base em farta bibliografia, afirmo que o panteísmo é avesso à rigorosa doutrina judaico-cristã, haja vista que fere o princípio da inadequação do absoluto (Deus) com o relativo, contingente e efêmero (o mundo).
O que concretamente se sabe é que ele, Jesus, propõe novas relações nos níveis sociais, incentiva a mudança de vida e a realização de ações eficazes no seio da comunidade, sob a ótica do serviço ao outro, com vistas à promoção do bem comum.
A regra de ouro do cristianismo é: “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles” (Mt 7, 12). É uma máxima que, embora já conhecida na antiquidade, tinha outro viés: “Tudo o que não quereis que vos façam não façais aos demais”.
A sentença, reelaborada por Jesus, estende as regras do convívio social, propondo uma conduta voltada ao benefício do próximo, pois que, a partir desse novo princípio, somos orientados a desejar o bem de quem nos ladeia conforme o bem que queremos para nós. Mesmo para aqueles que não professam a fé cristã, a máxima é considerada brilhante, sobretudo por causa da “subversão” do pensamento anterior.
Jesus é o maior exemplo de que a fé não é alienante, mas, ao contrário, promove a reflexão crítica a respeito da realidade histórica circundante (e contraditória), com isso abrindo espaço à esperança numa sociedade atribulada e pouco fraterna. O filho de Maria é belicoso a seu modo.
Na esfera religiosa, o que se sabe é que Jesus é a intervenção última e definitiva de Deus (Hb 1, 1-2), a Palavra de Deus que se fez carne e montou sua tenda entre os homens (Jo 1, 14), aquele que enfim resgata a imagem pura do Criador verdadeiro. Por meio dele há um convite à experiência da conversão, de forma que se acredite num Deus atuante na vida de todos, não como ameaça ou juízo, mas como salvação e esperança. Enfim, Jesus reaproxima Deus (amante da vida) do povo, ao contrário do judaísmo de então, que O afastara.
crisma
A “extrema-unção” é efetivamente um dos sacramentos em que há o uso do crisma (ou santo crisma). Ocorre que, em rigor, o nome “extrema-unção” é do tempo do Onça (desculpem-me pela ousadia; é delicioso sarcasmo do douto professor, como sabem).
A Igreja Católica Romana, em face da gravidade que o termo herdou no decorrer dos anos, passou a adotar o nome unção dos enfermos para o referido sacramento há algum tempo. V. Código de Direito Canônico e Catecismo da Igreja Católica.
culto
Há uso irregular na definição da expressão “culto de hiperdulia”. Veneração e adoração são, com efeito, termos controvertidos que só podem ser compreendidos à luz do sentido que a teologia lhes empresta.
O verbete diz corretamente que o culto de dulia é “aquele que se dá aos anjos e aos santos, na religião católica”. Nada que opor.
Porém, afirma erroneamente que o “culto de hiperdulia” é “adoração exclusiva da Virgem Maria como mãe de Deus, na religião católica”.
“Hiperdulia”, baseado em bom grego, nada mais é que, de forma sucinta, alto grau de “veneração”.
Ora, ambos os termos têm origem no grego: dulia vem de douleia, ao passo que latria vem de latreia; mas não são termos equivalentes: dulia é culto inferior à latria.
Em suma, dulia é culto de veneração, e latria é culto de adoração. O próprio verbete latria do bom dicionário de Sacconi afirma isto: “Culto a Deus, na religião católica”.
Sob o rigor da teologia, não há, nem mesmo no catolicismo, adoração a Maria. O próprio Sacconi o diz, no verbete venerar: “Render culto externo de profundo respeito a (qualquer ser sagrado): (...) o povo brasileiro venera Nossa Senhora Aparecida” [grifo meu].
Enfim, a Deus se rende culto de latria (adoração), a Maria se rende culto de hiperdulia (alta veneração) e aos anjos e aos santos se rende culto de dulia (veneração).
adoração/adorar
Ressalto: são termos controvertidos que só podem ser compreendidos à luz do sentido que a teologia lhes empresta. (Até foi motivo de arroubos do saudoso Napoleão Mendes de Almeida, que censurou a tempo um equívoco de minha parte. O ocorrido, revelar-lhos-ei em outra oportunidade.)
Vamos ao que interessa:
O verbete adorar consigna: “Os católicos adoram imagens, o que não é aceito pelos evangélicos”.
O verbete adoração registra: “A adoração às (ou das) imagens é tradicional prática católica”.
As frases são afirmativas, confirmam uma possível conduta herética dos católicos, porém...
Uma vez que conheço bem ambas as doutrinas, quer a protestante quer a católica (até por laços de estreita amizade), não tenho dúvidas em afirmar que essa censura específica de idolatria não se encontra no rol das objeções de todas as denominações reformistas, sobretudo quando nos referimos a instituições protestantes tradicionais.
Na verdade, ALGUMAS denominações evangélicas “pensam”, “suspeitam” ou até “acreditam” (verbos mais precisos) que os católicos cometam tal heresia. Melhor dizendo, acham que os católicos adoram imagens, ocultando tal prática sob a veste do termo “veneração”.
Explico: O que transita em meio ao povo fica à mercê de excentricidades e exageros, não é? Na religião não seria diferente, haja vista que nela pululam toda a sorte de desvios catequéticos, a exemplo da devoção exacerbada que alguns católicos rendem às imagens. É fato que isso corrobora a falsa ideia da idolatria. Aliás, o professor Sacconi fala magistralmente sobre o “culto indevido”, no verbete culto.
Conforme esclarece o Catecismo da Igreja Católica, “adorar” é ato que só pode ser conferido a Deus (ou a Javé, nome próprio dEle), o que não se estende a imagens que dEle se façam. Por exemplo, nem o mesmo Jesus (reconhecido pela cristandade como encarnação de Deus) pode ser adorado em “imagem de barro”, pois que a imagem, conforme sabemos no século XXI, não possui as qualidades a ele inerentes.
A imagem, esta nada pode, a não ser levar piparotes em programas da madrugada...
Aliás, todos temos apreço pelos objetos que recordam nossos pais e filhos. Não é justo? Oferecer-lhes mimos e cuidados não é próprio de nossa natureza? Por extensão, “adoramos” o que possa recordá-los (até uma mísera xicarazinha rachada). Porém, no âmbito da teologia, o termo “adorar”, afora o sentido figurado acima, tem função restrita (v. acepção 3 do verbete “adoração”).
Então, se o dicionário (o bom dicionário, reforço) diz que “os católicos adoram imagens, o que não é aceito pelos evangélicos”, pessoas desavisadas podem ser levadas acreditar no desvirtuamento doutrinal dos católicos. Melhor seria: “... ALGUNS protestantes censuram os católicos, porque JULGAM que estes praticam adoração a (ou de) imagens”.
A propósito, a própria expressão “adorar a Cruz” (acepção 1 do verbete adorar) é fortemente combatidas no âmbito católico, porquanto enseja equívocos gravíssimos. A Igreja Ortodoxa, fugindo à celeuma, adota há muito tempo os ícones em lugar das imagens.
Para não reacender a cultura iconoclasta nem as falsas interpretações religiosas num mundo já tão repleto de imposturas, sugiro a mudança das frases que exemplificam os verbetes em referência.
Ponho termo nos meus pareceres... Em breve tenciono enviar sugestões de natureza gramatical a essa editora, também relativos às obras recém-editadas do estimado Sacconi, sempre com o sincero objetivo de contribuir para o sucesso de seu magistério.
Enquanto me despeço, torço para que essa admirável empresa prossiga sem percalços na gratificante tarefa, ainda que árdua, de levar saber e civilidade ao povo brasileiro.
Gustavo Vieira de Araújo
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